É em sua maior e quase inacessível cratera, batizada pelo homem, aqui na Terra, de Jezero, que Marte guarda o seu precioso e intrigante segredo: já houve ou ainda há vida bacteriana em sua superfície? Foi justamente nessa cratera, com área estimada em pelo menos quinhentos quilômetros quadrados, que a sonda Perseverance, tecnologicamente a mais avançada ferramenta desenvolvida pela Nasa para a conquista espacial e munida de vinte e três câmeras, pousou na quinta-feira 18. Ao longo dos últimos quarenta anos, um número sem fim de outras sondas, hoje tão precárias quando cotejadas com a Perseverance, aproximaram-se de Marte. Não pousaram, mas enviaram para a Terra sinais de indícios de antiga presença de água – e, nesse ponto, vale lembramos que, aonde há água, há vida, ainda que microscópica e composta por extremófilos que sobrevivem nas mais inóspitas condições ambientais. Assim, caberá à vedete espacial Perseverance começar a dar o veredito sobre a questão que a humanidade colocou diante de si desde a Antiguidade e, mais cientificamente, depois que astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli, em meados do século 19, apontou o seu telescópio para o planeta vermelho e declarou ter visto “leitos de rios e calhas”. Ora, se há calhas é porque alguém as construiu, e esse foi o pensamento que deu azo a que se imaginassem as mais diversas e até estrambólicas formas de vida marcianas.

Novo “Os Lusíadas”

Depois de uma viagem de sete meses, perfazendo um percurso de aproximadamente sessenta e dois milhões de quilômetros, a nova espaçonave, recém-pousada, manterá uma rotina de dois meses enviando imagens da cratera e recolhendo fragmentos de rochas e porções de poeira. A Perceverance não voltará, por uma questão de insuficiência de combustível, e por isso dissemos que ela apenas começará o veredito sobre a questão da vida extraterrestre. No futuro, outra missão irá a Marte somente para apanhar o material rochoso e poeirento que ela guardará em si quando se autodesativar. Essa segunda sonda não terá problemas de combustível, porque não ficará trabalhando. Fará um bate e volta: chega, recolhe o material e retorna. E se no final de todo esse esforço e gasto de US$ 20 bilhões, equivalente a 1% do orçamento federal dos EUA, chegar-se à conclusão de que em Marte não há vida?

Mesmo que seja esse o resultado, ele é bem interessante porque nos ajudará a entender melhor a formação da própria Terra. “Tanto Marte quanto a Terra se constituíram a partir de uma só nebulosa”, diz Ivair Gontijo, físico brasileiro que trabalha nos laboratórios da Nasa. Outro ponto importante: ainda que a Perseverance comprove que há água em Marte (e, como se disse acima, se existe água formam-se vidas), a sonda atual, por mais sofisticada que seja, não consegue analisar e revelar qual é a forma dessas vidas — isso se dará apenas com o exame laboratorial das amostras que serão trazidas pela sonda que a sucederá. “Já mostraram que no planeta há minerais que se formaram em ambientes aquáticos. Isso comprova a existência de água, e água é a essência da vida”, diz Álvaro Penteado Crósta, professor titular do Instituto de Geocências da Unicamp e pesquisador visitante do Jet Propulsion Laboratory da Nasa.

“Do ponto de vista da sobrevivência humana, nós precisamos colonizar outros lugares, sair daqui. A Terra está sujeita a catástrofes naturais” Gustavo Porto de Mello, astrofísico (Crédito:Divulgação)

Vista de longe, a Perseverance se assemelha ao carro do famoso desenho animado “The Jetsons”, imperdível nos anos 1960. Ela acomodou-se à irregular superfície do planeta vermelho com a leveza que uma folha de árvore chega ao chão, contando com o auxílio de um paraquedas especial, e carrega consigo altíssima tecnologia: supercâmeras (que incluem potentes raios-X), espectrômetro (responsável por medir as propriedades da luz) e estação meteorológica. A maravilhosa Perseverance fará tudo sozinha. Quando o homem pisará em solo marciano juntamente com essas estruturas robóticas? Para a ciência nada é intransponível, mas são grandes os obstáculos. Dois deles: a falta de oxigênio, ou seja, é necessário ter-se absoluta certeza de que é possível produzi-lo em Marte; e as tempestades de poeira marcianas que tornam a visibilidade totalmente nula durante meses. A esses dois problemas, a Nasa já estuda como a tecnologia poderá assisti-los. “É vital colonizarmos outros planetas porque a Terra está sujeita a catástrofes naturais”, diz o astrofísico do Observatório do Valongo da UFRJ, Gustavo Porto de Mello. “E nenhum outro lugar é tão semelhante com a Terra como é Marte”. A julgar por essa fala, nunca os versos de Rita Lee e Roberto de Carvalho, imortalizados por Elis Regina, fizeram tanto sentido: “Alô, alô, marciano/aqui quem fala é da Terra/para variar/estamos em guerra (…)”. Quem sabe, algum dia, ocorra a inversão e cantemos de Marte para cá; quem sabe, algum dia, o homem chegará a Marte e descobrirá que nele não há seres verdes e malvados com antenas emitindo bip-bip, assim como nunca houve monstros do lado de cá do Atlântico como criam os navegadores lusitanos. E, quem sabe algum dia, um novo Luís de Camões comporá um novo “Os Lusíadas”, trocando os “mares nunca d’antes navegados” por ares nunca d’antes avoados.

ARIDEZ Primeira imagem que se tem do interior de Marte em uma visão panorâmica de 360 graus: um dia o homem pisará esse terreno (Crédito:Divulgação)