Marketplaces viram "vitrine" para produtos químicos consumidos como droga

Marketplaces viram "vitrine" para produtos químicos consumidos como droga

"EspecialistasPlataformas deixam porta aberta para que colas industriais circulem livremente e sejam propagandeadas como droga recreativa por usuários. Algoritmos e IA chegam até a involuntariamente impulsionar propósito irregular"O produto é elogiado por sua eficácia. É mencionado como ideal para eventos, destacando-se em festas", informa um resumo feito por Inteligência Artificial baseado em avaliações de compradores de uma cola acrílica formulada com solventes tóxicos, em um dos maiores marketplaces que atuam no Brasil.

Os comentários na plataforma online, que funciona como um "shopping virtual" reunindo vendedores diversos, são elogiosos para efeitos que nada têm a ver com o propósito original do produto: "cola até pensamentos"; "a vibe é certeira"; "na festa, ele arrasa"; "baforada fria, muito bom mesmo".

Na realidade, os comentários revelam um mercado paralelo de substâncias vendidas legalmente, embaladas como produtos de uso profissional industrial, mas consumidas de forma recreativa, escancarando uma uma zona cinzenta entre a regulação química e o comércio digital.

O que são as colas industriais

Essas colas industriais, formuladas com solventes como o diclorometano, circulam há décadas no mercado brasileiro. O consumo recreativo de inalantes parecia ter perdido força desde o declínio do lança-perfume e do "loló" nos anos 2000, mas pesquisas regionais mostram que o uso persiste – agora, com a compra acelerada via plataformas online. Um estudo publicado pela Fiocruz apontou que 12,6% dos estudantes de escolas públicas da Grande São Paulo haviam usado inalantes no último mês.

Para Silvia Cazenave, doutora em toxicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e membro da Sociedade Brasileira de Toxicologia, essas substâncias inalantes têm picos de consumo irregular, variando entre o aperto da fiscalização e mesmo o poder aquisitivo dos usuários.

"Essa categoria de solvente clorado, que tem a molécula de cloro, tem se tornado bastante comum. Temos um pico de utilização desses produtos, às vezes uma fiscalização mais intensa faz diminuir a procura, e depois isso volta. Me recordo de época em que setores da cidade eram conhecidos como cracolândia, onde as pessoas usavam cola de sapateiro. Esse uso acabou diminuindo bastante, mas as pessoas continuam usando para substituir o lança perfume, a depender do local, do poder aquisitivo", diz.

O baixo custo, fácil acesso e a falta de controle sanitário mantêm o consumo ativo. Com a expansão dos marketplaces, esse consumo ganha nova forma. Por cerca de R$ 60, sem qualquer restrição de idade ou alerta, é possível comprar um litro da cola nos grandes marketplaces em operação no Brasil.

Papel dos algoritmos

A DW buscou o produto em todos os grandes marketplaces que operam no país. Apesar de serem encontrados com facilidade, apenas os gigantes Mercado Livre e Amazon possuíam comentários de usuários descrevendo o efeito do produto como droga e resumos positivos gerados por IA. A boa avaliação é um dos pontos em que o algoritmo da plataforma considera para ampliar a divulgação de um item entre milhares de outros.

Para Patrícia Cotti, da FIA Business School, o risco nasce da própria arquitetura comercial dos marketplaces. Para dar indicações à compra, os algoritmos priorizam a chamada métrica de sucesso: alta taxa de cliques, volume positivo de avaliações, quantidade de conteúdo/descritivos, entre outros. "Se o comentário [do produto] diz ‘ótimo, funciona rápido se usado de tal forma', mesmo que descreva um uso indevido, a Análise de Sentimento captura apenas a avaliação positiva [impulsionado a exposição do produto]", explica.

As plataformas, portanto, operam com essa análise básica, que se limita a identificar o número de estrelas e palavras positivas como "ótimo" ou "excelente"", sem considerar o contexto em que aparecem, o que inclui elogios ligados a usos indevidos descritos nos próprios comentários.

"Se algo está descrito como 'Ótimo, funciona muito rápido se feito de forma xyz', mas esse funcionamento xyz é um uso indevido, por exemplo, a Análise de Sentimento lerá só as referências positivas", afirma.

"Muito embora existam nas regras dos maiores marketplaces políticas quanto ainibição de tais usos quanto aos conteúdos 'oficiais' de cadastro, com punição dos vendedores, os comentários acabam por gerar um monitoramento mais difícil, ainda dependente de uma avaliação humana", completa.

Portanto, quando elogios associados a usos indevidos passam despercebidos pelos sistemas de moderação, cria-se um ambiente em que produtos potencialmente perigosos são impulsionados exatamente pelos mesmos mecanismos que ampliam a visibilidade de itens legítimos. O resultado então é um ciclo em que algoritmos reforçam práticas de risco sem que as plataformas consigam reagir com a mesma velocidade.

Implicações para a saúde

Segundo especialistas, o diclorometano e outros solventes, encontrados nas colas consumidas, são classificados como depressores do sistema nervoso central e, após a inalação, são rapidamente absorvidos pelos pulmões, sendo o cérebro alcançado quase de imediato. Como consequência, são percebidas tontura, sonolência, confusão mental, fala arrastada e dificuldade de coordenação. Mesmo em doses consideradas pequenas, pode ser registrado risco de morte súbita em indivíduos suscetíveis.

"O uso repetido de diclorometano e outros solventes voláteis é extremamente destrutivo para o organismo, pois são substâncias lipossolúveis que atravessam facilmente a barreira hematoencefálica e se acumulam em tecidos gordurosos, como o cérebro, além de serem metabolizados em substâncias tóxicas", afirma Maurício Yonamine, doutor em Toxicologia pela USP.

Segundo Yonamine, esse uso crônico causa a degeneração da mielina, uma capa protetora dos neurônios, resultando em danos que se assemelham a doenças degenerativas. "Podem ser observados perda de memória, dificuldade de concentração, raciocínio lento, e diminuição da capacidade de aprendizado. Em casos graves, pode evoluir para um quadro semelhante à demência. Além disso, há aumento considerável de desenvolver transtornos psicóticos", diz.

O que pode ser feito

Diante de danos neurológicos que podem se tornar irreversíveis, especialistas afirmam que a resposta precisa incluir mudanças regulatórias e mecanismos de controle no comércio digital. Modelos de compra com exigência de CPF ou prova de idade, além de alterações no odor e formulação, são vistos como medidas básicas para reduzir o acesso a solventes usados como droga.

"Colocar um odor desagradável no produto é uma saída. Você faz a cola, continua com o solvente, mas coloca uma substância com o odor desagradável que poderia impedir a inalação, como se fosse um lança perfume", diz.

Além disso, os marketplaces também têm responsabilidades. Segundo Patrícia Cotti, da FIA, a legislação brasileira se baseia na legislação europeia do assunto, que exige que qualquer vendedor tenha um "responsável econômico" para responder pela segurança do produto.

Para a Anvisa, que regulamenta a comercialização de substâncias químicas, os exemplos apresentados, como adesivos para acrílico e policarbonato, se enquadram como produtos de uso industrial legítimo, não destinados ao consumo humano.

"Portanto, qualquer produto que hipoteticamente fosse destinado ao consumo humano e que contivesse essa substância seria irregular", afirmou o órgão, em nota. "Assim, não são produtos sujeitos à vigilância pela Anvisa, mas sim ao controle químico previsto na legislação específica do Ministério da Justiça", completou.

Portanto, a fiscalização no varejo digital depende de notificações, ações dos estados e adaptações voluntárias das próprias plataformas, o que cria a brecha explorada pelo consumo recreativo.

Procurado, o Mercado Livre informou que permite a oferta de produtos de venda livre, em conformidade com a legislação brasileira, mas que mantém monitoramento contínuo, colabora com a Anvisa e autoridades de segurança e remove anúncios que incentivem usos irregulares, notificando os vendedores conforme seus termos.

"A plataforma repudia qualquer desvio de finalidade na utilização dos produtos, sobretudo quando associada a usos ilícitos ou que ofereçam risco à saúde", disse, em nota. Já a Amazon preferiu não comentar.