25/10/2019 - 9:30
O escritor e crítico paulistano Mário de Andrade (1893-1945) é o segundo autor brasileiro mais estudado com análises, ensaios e teses em torno de sua obra, perdendo só para Machado de Assis. Sua posteridade tem sido maior que a vida – e a ofuscou. Detalhes íntimos sobre ele presentes na correspondência passiva permaneceram trancafiados por 50 anos depois de sua morte, tanto por razões legais sobre o direito de privacidade como por determinação dos parentes, que, por um decoro tido hoje por ultrapassado, devotaram-se a preservar a memória do ente querido. Em 2015, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) liberou para consulta centenas de cartas dos correspondentes do escritor. Um dos primeiros pesquisadores a ter se beneficiado da abertura foi o escritor mineiro Jason Tércio. Desde o final dos anos 1990 ele projetava elaborar a biografia de Mário. O resultado está nas 544 páginas de “Em busca da alma brasileira – Biografia de Mário de Andrade” (editora Sextante).
Tércio pesquisou em dezenas de arquivos e bibliotecas para compor o que ele chama de “biografia histórica”, ou seja, sem entrevistas com testemunhas, mas compensada por documentos e gravações. “Meu objetivo foi fazer uma biografia em estado puro, sem análise de obras que têm incontáveis intérpretes”, diz Tércio à ISTOÉ. “Quis narrar a história do indivíduo, do nascimento à morte.”
Uma tarefa inédita e bem-sucedida. Até a publicação da biografia, havia relatos de amigos, parentes e colegas, mas não uma narrativa completa e coesa. “Em busca da alma brasileira” traz revelações sobre a vida sexual, a formação familiar, a doença crônica que o atormentou por duas décadas, os momentos de depressão e de luta pela cultura e as circunstâncias mal explicadas de sua morte.
A descoberta do livro mais aguardada diz respeito à sexualidade. “As cartas demonstram que Mário era bissexual”, afirma Tércio. “Ele se envolveu com homens e mulheres e deu vazão a seus desejos nos lupanares da rua Líbero Badaró, em São Paulo, e na zona do mangue, no Rio.” Ainda ginasiano, apaixonou-se por Maria da Glória, de 13 anos, filha de um amigo da família, com quem manteve contato a vida inteira. Em seguida, foi seduzido por H. (o biógrafo deixa o nome em segredo porque se tornaria um empresário conhecido), um colega natural de Santos e membro da Congregação da Imaculada Conceição.
O caso é parecido com o do conto “Frederico Paciência” (1924), considerado pelos especialistas um dos avatares da literatura gay lusófona. Para Mário, H. foi o “grande e único amigo”, como no conto, e costumava passar o carnaval ao lado dele, para acompanharem as procissões da Semana Santa. Mário se declarava “pansexual”. “Ao colega mineiro Rosário Fusco, confessou que era tão sensual que se relacionava até com árvores”, diz Tércio. “Imagine o que não fez quando excursionou à floresta amazônica…”
Sua paixão mais célebre e correspondia se deu com a pintora Anita Malfatti. A exposição de telas de Anita em 1917 encantou Mário pelo que ele chamou de “expressionismo tropical” e o converteu à ousadia. Anita se deixou seduzir pela voz aguda e melíflua do admirador. O casal formou o núcleo que criaria a Semana de Arte Moderna de 1922. Chamado de Grupo dos Cinco, contava com s escritores Menotti del Picchia e Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral. Saíam juntos e frequentavam a segunda garçonnière de Oswald, na praça da República. Quando Anita foi estudar na Europa, enviou dezenas de cartas amorosas a Mário. Nelas, pedia ao amigo que viesse visitá-la.
Mas Mário resistia em sair do Brasil, recusando até convites dos governos argentino, francês e americano. “Tinha medo de perder a autenticidade de sua brasilidade, como aconteceu com os colegas modernistas”, afirma Tércio. Era a um só tempo vaidoso e tímido, segundo Tércio, e muitas vezes se fechava em casa, alegando dores. Caía em depressão, o que muitos atribuíam ao fato de ter sido demitido da diretora do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. Na realidade, revela o livro, o comportamento instável se deveu a uma doença que contraiu aos 29 anos, não diagnosticada na época: a pleurodinia, uma infecção que afeta os músculos do peito e do abdome. Conhecida como “garra do diabo”, provocava sintomas variados em Mário, fato que confundia os médicos.
Um deles era o infarto, que de fato veio a matá-lo na cama de casa num domingo à tarde, logo depois de dar algumas tragadas no cigarro. Era tão obsessivo pelo trabalho que tinha marcado uma banca no Conservatório para o dia seguinte. Entre as obsessões que o assombraram, uma se destaca acima e atravessa as cinco atividades a que se dedicou: música, literatura, crítica, artes plásticas e folclore. “O que mais desejou foi dar uma alma ao Brasil”, afirma Tércio. “E teve sucesso. Deu a cara que o Brasil tem hoje, combinando arcaísmo, modernidade, religião e lubricidade”. Em pessoa, Mário de Andrade sintetizou ideias, frustrações e angústias do homem culto brasileiro de seu tempo.
Vida, obra e afetos
Primeiro conflito interior
Mário tinha três anos e morava no Largo do Paissandu (SP), quando o pai levou-o ao barbeiro para cortar os cachos. Contou o episódio no conto “Tempo de camisolinha”: chorou e esperneou, revelando o temperamento insubmisso
Revista de vanguarda
Mário participou da criação da “Klaxon”, veículo dos manifestos e ideias da Semana de Arte Moderna. Circulou entre maio de 1922 e janeiro de 1923. Abaixo, o número 2, de outubro de 1922
Amor reprimido
Anita Malfatti foi estudar na Europa (foto tirada em Veneza, em 1923). Ao partir, enviou uma carta apaixonada a Mário, mas se desculpou: “Escrevi uma carta sentimental a um amigo. Perdoe-me”
Expedição pelo Brasil
Mário, Tarsila e amigos se banham no Chapéu Virado, em Belém, em 1927, durante a expedição pela Amazônia para documentar o folclore nacional — e se divertir
Festas e viagens
Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade (em 1924) promoviam encontros com Mário no ateliê da pintora e passeios de Cadillac. Tarsila e Mário romperiam com Oswald, nos anos 1930
Auge da produtividade
Mário pesquisa tanto música erudita como música popular em São Paulo, em 1935, depois de publicar poesia e ficção. Publicou 22 títulos — outros 33 saíram após a sua morte