Incontável número de vezes pergunto a ladrões e traficantes, presos, por que enveredaram pelo mundo do crime. Espero por respostas que me transportem a novas e profundas reflexões sociológicas e psicossociais. Profundas? Tolice. O que vem é raso: “sou zoião”. Não é difícil compreender que esse chulo aumentativo da palavra olho, utilizado nas cadeias, significa então o indivíduo que quer ter muito, sem trabalhar nada. Pergunto também por que bandidos se matam tanto entre si, uma irracionalidade, já que têm a lei que desacatam como inimiga em comum – isso não significa o delinquente adquirir a dimensão da consciência política nem se transformar no “rebelde primitivo” descrito pelo historiador britânico Eric Hobsbawm. A resposta, novamente, é pouco original: “bandido mata bandido porque é zoião”. Trata-se, mais uma vez, de um querendo tomar o que é do outro. Pois bem, essa é a causa das atuais rebeliões no País, sobretudo em penitenciárias de Roraima, Rondônia e Acre, e que até a quinta-feira 20 deixavam um rastro de 30 presidiários mortos por degola, fogo ou facada – todos assassinados pelos próprios presos.

Desde que o mundo é mundo e desde que ladrão é ladrão, são frequentes as disputas entre quadrilhas, nas ruas ou em instituições fechadas. Há, no entanto, perigosas diferenças entre os conflitos corriqueiros e a guerra nacional que agora toma corpo no sistema penitenciário, opondo as famigeradas organizações criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), figurantes entre as mais poderosas da América Latina. O PCC é comandado por Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, condenado a 234 anos de prisão; o CV é liderado por Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, com condenação de 430 anos. Ambos se abastecem do narcotráfico pesado, ambos são donos de poderio bélico que inclui armamentos capazes de abater helicópteros e pequenos aviões. Em suma: em relação a tais facções, os demais conflitos viram coisa de transgressor rastaquera.

O embate do PCC com o CV ocorre pelo domínio do tráfico na fronteira com Colômbia, Bolívia e Paraguai, e está-se falando de uma movimentação financeira anual na casa dos US$ 150 milhões (sedutora menina dos olhos para qualquer “zoião”). O mais assustador a nos ameaçar com a “anomia social” (Émile Durkheim), no entanto, é o fato de que essa guerra vai engolfar praticamente todas as cadeias do Brasil (700 mil presidiários), e isso é inevitável porque elas são dominadas ou por uma ou por outra dessas organizações. Mais: a guerra virá para as ruas, e também isso torna-se inevitável, porque, aqui fora, é que o narcotráfico se organiza para abastecer as penitenciárias. O perigo maior, assim, não são os líderes do PCC e do CV – eles estão presos e que briguem. O grave são seus tentáculos que atravessam os muros, porque é aqui, nas ruas, que se dá o choque armado pelo monopólio das biqueiras (local que vende drogas): lembremos de Ipanema encoberta por recente tiroteio nos morros do Pavão-Pavãozinho.

“Temo confrontos dentro e fora dos presídios, e com dimensões nacionais”, diz o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. “A harmonia entre PCC e CV acabou”, sentencia um dos mais eficientes penitenciaristas do Brasil, Lourival Gomes, quatro décadas de experiência nessa área e secretário da Administração Penitenciária de São Paulo. Ainda que fosse possível isolar em presídios federais os principais membros das duas facções, como dar conta dos integrantes do PCC e do CV na sociedade em geral? Corremos, sim, o risco de ficarmos emparedados por tiroteios e atentados. O crime organizado passeia em praça pública e até já tenta a sorte nas urnas eleitorais da vereança – como tentou o PCC quando também era Partido da Comunidade Carcerária.

O CV nasceu no presídio de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, fruto podre do contato entre presos comuns e presos políticos da luta armada, na década de 1970. Os muito românticos da esquerda daquela época julgaram que surgia um movimento em prol da justiça social. Bobagem, o CV traficou desde bebê. O PCC veio à luz em 1993, na Casa de Custódia da cidade paulista de Taubaté, em resposta ao massacre do Carandiru. Seu lema “igualdade, liberdade, fraternidade, paz e justiça” (pobre Revolução Francesa!) foi apenas fachada para também traficar. Ambas tiveram diversos chefões, mortos em sucessivos banhos de sangue, até que Fernandinho Beira-Mar e Marcola tomaram o poder. O primeiro desentendimento entre eles veio em 2005, quando o PCC expulsou o CV da Baixada Santista, no litoral de São Paulo, e só em 2013 a paz foi refeita numa reunião de lideranças. Estabeleceu-se então nova parceria comercial, agora mais uma vez rompida. Os integrantes dessas facções se tratam por “irmão” e chamam de “população” os presos que as rejeitam. Trabalhador honesto é designado como “otário”. Sem dúvida, tal classificação do crime organizado ajuda a medir o risco que estamos correndo. Como disse o secretário Lourival Gomes, “a guerra recomeçou”.

Sequestro e Dia das Mães

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O terror tomou conta de São Paulo e de diversas cidades paulistas na noite de 12 de maio de 2006, uma sexta-feira, antevéspera do Dia dos Mães – essa data, a do Dias das Mães, é importante nessa história porque ela irá desconcertar, como ao final revelaremos com exclusividade, algumas autoridades. Materializado numa série de atentados que seguiram a tática de guerrilha urbana (atuar em diversos pontos ao mesmo tempo), o terrorismo foi promovido pelo PCC sob as ordens de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, condenado há 234 anos de prisão por roubos a bancos, tráfico de drogas e assassinatos. O triste saldo: 90 mortos somente em São Paulo, 298 se contarmos Espírito Santo, Bahia, Paraná, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais. Na capital paulista centenas de ônibus foram incendiados. A motivação, segundo investigação de órgão ligado a ONU, é que policiais sequestraram um enteado de Marcola e extorquiam-lhe dinheiro. Numa das negociação com o criminoso, autoridades pediram-lhe que interrompesse os ataques porque o domingo, 14 de maio, era Dia das Mães. Marcola respondeu: “Mãe? Eu nunca soube o que é ter mãe na vida”. O diálogo nasceu morto.

Fotos: Rogério Cassimiro/Folhapress; REUTERS/JPavani; Ricardo Borges/Folhapress


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