27/12/2023 - 9:18
Deitado de bruços em plena selva de Darién, com um pistoleiro apontando para ele, Marcel Maldonado se lembrou das advertências da mãe sobre os riscos de emigrar para os Estados Unidos. Ele acreditou que morreria na densa floresta tropical.
Sequestrado por criminosos na selva de Darién, que separa a Colômbia do Panamá, uma das rotas migratórias mais perigosas do mundo, o venezuelano de 30 anos, com uma perna amputada, lembrou-se que sua mãe temia que fosse atacado por animais ou delinquentes.
“Aqui nem mesmo meu corpo vão encontrar”, pensou.
Ele chegou a Darién dias depois de deixar a Venezuela, em 15 de setembro, com a esposa, Andrea, de 27 anos, e seu filho adotivo, Samuel, de oito. Foi um dos piores momentos de seu êxodo de quase dois meses passando por nove países.
Durante estas semanas, mais de 15 jornalistas da AFP em Venezuela, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, México e Estados Unidos acompanharam seu périplo de 4.300 km de ônibus, a pé ou de balsa, com uma bengala na mão.
De cavanhaque e olhar sereno, este técnico em processamento de dados é um dos 7,7 milhões de venezuelanos – 25% da população do país, segundo a ONU – que desde 2014 deixaram a Venezuela, um país rico em petróleo, mas imerso em uma profunda crise política, econômica e social há anos.
Em uma década, ele viu o PIB de seu país encolher 80%.
Na Venezuela, “imaginava uma vida de miséria, que é o que a minha família está vivendo”, explica.
Ele queria outro futuro para sua esposa e seu filho. Também temia não poder substituir a prótese que usa desde que perdeu a perna em 2014, quando um carro atropelou sua moto.
Para custear a viagem, vendeu itens de valor que juntou com a mulher durante os quatro anos que viveram no Peru, para onde imigraram inicialmente em 2019. Seu pai também vendeu seu carro para ajudá-los.
Para trás, deixou a casa inacabada em Maracay, Venezuela, uma família rompida e, em um armário velho, roupas suas que sua mãe, Doraida Medina, costuma cheirar para se lembrar do filho.
Marcel, Andrea e o filho chegaram de ônibus na primeira parada, Cúcuta, no norte da Colômbia, na fronteira com a Venezuela, onde compraram o necessário para atravessar a selva: creolina para espantar as cobras, uma barraca de camping, um fogão pequeno e botas de borracha.
Aqui, os migrantes trocam conselhos para sobreviver em Darién. A maioria é de venezuelanos, mas também há haitianos, equatorianos, afegãos, chineses e africanos, em busca do “sonho americano”.
No norte da Colômbia, pagou a traficantes 900 dólares (cerca de R$ 4.400, na cotação atual) para cruzar de lancha o golfo de Urabá e para que, em seguida, fosse levado de moto até a entrada de Darién.
Puseram-lhe um bracelete no pulso com a inscrição “fronteira”, e adentrou na mata densa por trilhas labirínticas e rios arenosos, onde os pés afundam ou se chocam com as pedras. Eram dezenas em fila indiana, como formigas. Homens e mulheres com mochilas nas costas, alguns com crianças nos braços.
“A loucura” se inicia “quando você começa a descer pelo Panamá”, conta pausadamente à AFP. “É como um povoado sem lei, não há segurança, ninguém te vende nada, você depende do que tiver na mochila. As quadrilhas organizadas ficam escondidas entre as árvores”.
Segundo a ONG Human Rights Watch, organizações como o Clã do Golfo – o principal cartel do narcotráfico colombiano – faturam dezenas de milhões de dólares pelo controle da rota migratória do Tampão de Darién.
Um tiro disparado para o alto por um criminoso deteve os migrantes. “Fomos jogados no chão, todos de costas, jurava que iam atirar em nós”, relata Marcel.
Outro delinquente “batia nas costas dos homens com o facão. Entreguei tudo. Não vou morrer por bens materiais”.
“As mulheres foram revistadas nas partes íntimas. É horrível porque você não sabe o que pode acontecer”, acrescenta.
De janeiro a outubro, 397 migrantes – 97% deles mulheres – foram vítimas de violência sexual na selva de Darién, segundo a ONG Médicos Sem Fronteiras.
“Minha esposa ficou do outro lado, estava com meu boné. Senti de tudo quando vi um dos criminosos com o boné na cabeça. Pensei, ‘O que terá feito com ela?’. Ela chegou, estava bem com o menino. Nos abraçamos, choramos por um bom tempo”, conta.
Após oito horas de sequestro, Marcel e sua família só conseguiram salvar os documentos. O menino teve febre e não comeram nada durante todo o dia.
Passaram mais dois dias e meio em Darién, por onde transitaram mais de meio milhão de migrantes este ano, segundo o governo panamenho – aproximadamente 250.000 a mais que em 2022.
Um último rio marca o fim da selva. Extenuado, mas vitorioso, Marcel avança, apoiado em um de seus “anjos” da guarda, seus compatriotas Gustavo e Jesús, aos quais conheceu na cidade colombiana de Cúcuta.
“Se não fosse por eles, não teria conseguido. Por mais força que faça, a correnteza dos rios é forte, puxam minha prótese”, diz à AFP com a água na altura dos joelhos.
No abrasador Bajo Chiquito, primeiro povoado panamenho na saída de Darién, ele e sua família podem, por fim, comer um prato quente e encontram um local seguro para dormir. É aqui que jornalistas da AFP se encontram pela primeira vez com Marcel, sua esposa e seu filho.
A odisseia continua. Marcel recebe dinheiro que sua irmã lhe envia após vender seu carro.
Na Costa Rica, Marcel e sua família dormem em cima de papelões em um terminal de ônibus.
Sua esposa, Andrea Loreto, ex-funcionária de uma universidade, com rosto infantil e cabelos castanhos abaixo dos ombros, explica a decisão de migrar.
“Na Venezuela o que se consegue é para a comida”, diz.
Com um telefone emprestado pela AFP, eles ligam para os familiares. Marcel conta para a sogra que Samuel está com febre e vômitos e brinca com uma sobrinha que perdeu um dente de leite.
Na Costa Rica, Marcel sente a população “um pouco fria” com os migrantes, mas consegue que lhe deem de presente passagens de ônibus para seguir viagem para a Nicarágua.
Em Honduras, uma insolação quase o derruba, mas as pessoas o ajudam, comprando balas vendidas na rua, assim como na Guatemala. A solidariedade está presente em cada etapa do caminho.
“Se pensam que a selva é o mais difícil, preparem-se para o México”, advertiu-lhes outro migrante em Darién.
“É realmente o mais difícil”, confirma Marcel, ao mencionar o custo de vida, as caminhadas eternas e as extorsões sem fim.
Chega-se ao país por Chiapas (sul), porta de entrada dos migrantes vindos da América Central que tentam chegar aos Estados Unidos.
Marcel esteve em um abrigo público de onde saiu porque se sentia “preso”. Então, dormiu na rua com a esposa e o filho.
Para evitar os agentes migratórios mexicanos, Marcel, Andrea e o menino se refugiaram no mato. Foi um suplício. “Tiras de grama se agarravam à prótese e no que ia dar um passo, empacava e caía de joelhos (…) Não conseguia me levantar porque não tinha onde me segurar”.
Chegaram à Cidade do México em 1º de novembro, em plena comemoração do Dia dos Mortos. Marcel se permite um momento de descontração e fotografa com seu celular as caveiras gigantes na praça do Zócalo, liga para o pai para que ouça as ‘rancheras’ (músicas típicas mexicanas) tocadas pelos mariachis e faz uma selfie com um palhaço que pede moedas.
Em breve, ele pegará o ônibus para Monterrey e depois para Matamoros (norte), para a jornada final.
Pelo caminho, é extorquido nove vezes pelas autoridades que paravam o ônibus e ameaçavam deportá-lo. Cada achaque aumentava sua angústia, pois precisava guardar 60 dólares (cerca de R$ 290) para os traficantes que vão ajudá-lo a cruzar o rio Bravo, entre México e Estados Unidos.
Chegou à noite em Matamoros, temendo o controle que os narcotraficantes do cartel mexicano do Golfo fazem ali.
A saudade o invade quando come arepa (pão típico da Venezuela) pela primeira vez desde que deixou Maracay, preparada por uma venezuelana que as vende enquanto espera uma audiência para pedir asilo. O invólucro de papel alumínio lhe traz a lembrança das que levava para a escola, feitas pela mãe.
Às portas do “sonho americano”, descarta pedir asilo pelo aplicativo móvel da Patrulha Fronteiriça americana, mediante o qual são agendadas entrevistas com as autoridades. O trâmite pode demorar meses.
Marcel sabe que foram retomadas as deportações de venezuelanos em situação irregular após um acordo recente entre Washington e Caracas, com o presidente americano Joe Biden sob forte pressão pelo tema migratório com vistas às eleições presidenciais de 2024.
Segundo a patrulha fronteiriça americana, entre outubro de 2022 e setembro de 2023, foram registradas 2,4 milhões de entradas de migrantes pela fronteira sul dos Estados Unidos, um recorde.
Marcel resolve se lançar no rio essa mesma noite, com traficantes venezuelanos.
“Disseram que só tinha que levar documentos, dinheiro e descartar bolsas e roupa porque de qualquer forma os descartariam quando nos entregássemos” à patrulha fronteiriça. “Senti muito medo, eram pessoas de aparência ruim”. Um homem com capuz e máscara azul de lutador ordena tirar as câmeras da AFP do local.
Dezenas já cruzaram na penumbra os quase 30 metros que a essa altura do rio Bravo separam o México dos Estados Unidos. A prótese afunda e ele precisa tirá-la com a mão para prosseguir. O coto não encaixa bem, pois Marcel emagreceu durante a viagem.
“Entramos na água, bastante fria. Batia acima do quadril. Os colchões eram pequenos. Tinham que passar um por um. Quando subo, temem que a prótese possa furá-o e colocaram um pano”, conta, lembrando o uso de colchões infláveis para a travessia neste trecho do rio.
Na outra margem, o último obstáculo. Com a ajuda dos colegas, agarrado a um pano preso em um pedaço de madeira, escala o arame farpado.
Os faróis de um carro da patrulha fronteiriça americana os ilumina.
Marcel envia um vídeo triunfal para a família. “Estávamos lá em cima! Que alegria!”. É 4 de novembro e Marcel, esposa e filho percorreram 4.300 km e gastaram 7.000 dólares (R$ 33.853) na viagem.
Mais de 680 pessoas morreram ou desapareceram em 2022 tentando cruzar a fronteira entre os dois países, segundo a Organização Internacional para as Migrações.
Agentes armados os conduzem até um ônibus, que os leva para um prédio em Brownsville (Texas) para os trâmites de entrega. Marcel foi separado da esposa e do filho por um dia e meio.
Após fazer exames de DNA para registrar sua identidade, entregam-lhe um celular para que ele e a família possam ser contactados durante um mês.
A família obteve permissão de residência até maio de 2026, quando um juiz decidirá sobre seu pedido de asilo.
“Não me deportaram porque não deportam as famílias”, explica Marcel.
Sua vida nova começa em Greenville, na Carolina do Sul, onde aluga um quarto.
Quando a AFP os encontra em dezembro, Marcel vende flores nas ruas, à espera da permissão para trabalhar. Andrea faz faxinas e Samuel já frequenta a escola, onde aprende inglês.
Na cabeça deste venezuelano, agora só há espaço para os sonhos: trabalhar como taxista, ter um filho e trocar a prótese. Quem sabe um dia voltar a jogar basquete. “Não há nada impossível”.
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