Imaginem um russo falando com a alma. Marc Chagall (1887 – 1985) era assim. Ele nasceu na Bielorrússia e, depois, naturalizou-se francês. Dizia que suas mãos eram muito macias e que, por isso, teve de encontrar algum trabalho que não o obrigasse a se afastar do céu ou das estrelas. Pois bem, para nossa sorte ele descobriu o sentido da vida com a pintura e virou um dos artistas mais famosos do século XX.

Chagall pode ser considerado o último sobrevivente da primeira geração de modernistas europeus. Sua trajetória artística é intensa. Criou obras em uma ampla gama de formatos, incluindo pinturas, desenhos, ilustrações de livros, vitrais, cenários, tapeçarias, cerâmicas e gravuras. Só para citar alguns exemplos de trabalho, são dele o maravilhoso teto da Ópera de Paris e as janelas da ONU, do Instituto de Arte de Chicago e das Catedrais de Reims e Metz.

Pablo Picasso certa vez disse que Chagall era um dos únicos pintores capazes de entender o que realmente é a cor. O pintor respondia enfatizando que a paleta de um artista é o que dá sentido à vida e à arte, sendo a cor do amor (Suspiros!). Como um dos pioneiros do modernismo, Chagall experimentou a era de ouro do modernismo em Paris, onde sintetizou as formas artísticas do cubismo, do simbolismo e do fauvismo, dando origem ao surrealismo.

Tinha um estilo poético e figurativo que o tornou um artista muito elogiado e reconhecido internacionalmente. Enquanto muitos de seus colegas buscavam experimentos ambiciosos que frequentemente levavam à abstração, a distinção de Chagall era a sua fé no poder da arte figurativa, que ele sempre manteve apesar de absorver algumas ideias do fauvismo e do cubismo. Aprendeu a pintar na juventude no ateliê de um retratista famoso da sua cidade natal e, depois que se mudou para a França em 1910, tornou-se uma figura proeminente da École de Paris, que reunia os melhores pintores do mundo e que enchiam de cor, alegria e vivacidade a capital francesa.

Retornou para a Rússia por causa da Primeira Guerra Mundial e se casou um ano mais tarde com Bella, uma simpática moça que conheceu na sua aldeia. Depois da grande revolução socialista na Rússia, que pôs fim ao regime autoritário czarista, foi nomeado comissário para as belas-artes, inaugurou uma escola de arte e iniciou aberta para tendências modernistas. Foi neste período que entrou em confronto com políticos de lá e, desiludido com o movimento, acabou voltando para Paris.

O seu retorno à França foi marcado por um período de grande produção artística. Ilustrou uma edição da Bíblia, as Fábulas de La Fontaine e fez o livro de memórias “Minha Vida” após algumas viagens internacionais. Sua arte sofreu com a perseguição dos judeus e com a Alemanha prestes a entrar em mais uma guerra. Com isso, partiu para os Estados Unidos e, alguns anos depois, enfrentou o desafio da depressão após o falecimento de amada esposa.

Dois anos depois do fim da guerra, explorou outras técnicas como a cerâmica e ao regressar definitivamente à França, pintou os vitrais da Universidade Hebraica de Jerusalém. Em sua homenagem, foi inaugurado em 1973 o Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, na famosa cidade de Nice, no sul da França. Em 1977, foi condecorado pelo governo francês com a Grã-cruz da Legião de Honra.

Sua produção artística foi tão impressionante, que é praticamente impossível contar tudo o que ele fez. No total, possui mais de 10 mil obras, de diferentes estilos e com muitos elementos imaginários e oníricos (relacionados a sonhos). Seu trabalho foi amplamente influenciado pela origem russa e a paixão pela escola artística francesa. Usou muitas cores para transmitir mensagens e sentimentos de amor e, também, de angústia, tristeza e sofrimento como as aflições dos judeus perseguidos. Foi bem-sucedido com todas as técnicas que explorou (incluindo cerâmicas, gravuras, murais e vitrais).

Participou de três movimentos artísticos (Surrealismo, Cubismo e Expressionismo), porém rejeitou cada um deles, permanecendo comprometido com a arte figurativa e sua própria narrativa, tornando-o um dos expoentes mais proeminentes do período moderno.

A origem judaica sempre o manteve associado à fé, independente de religião. Aliás, temas cristãos, o agradavam pela narrativa e alegoria. Dizia que linhas, ângulos, triângulos, quadrados o levaram para longe, chegando a horizontes encantadores e criações fantásticas. Este trabalho inicial mostra claramente as influências cubistas e fauvistas, mas ao contrário das obras de Pablo Picasso ou Henri Matisse, Chagall é muito mais lúdico e liberal com elementos decorativos, criando um paraíso pastoral similar ao interior da Rússia. Fazia uma mistura do moderno e do figurativo, com um tom leve e caprichoso.

Ver uma obra de Chagall é como mergulhar em um conto de fadas para refletir sobre sentimentos e sonhos. Gosto muito de todas as suas obras e fico encantada com a quantidade de elementos e significados. “Paris pela Janela” (1913), por exemplo, mostra a mistura do seu amor pela Paris moderna e pelos padrões mais antigos da Rússia. À primeira vista, a imagem pode lembrar uma foto de Robert Delaunay da Torre Eiffel, mas Chagall cria uma cabeça de duas faces e uma figura humana flutuante, misturando o imaginário com o real.

“Bella com Colarinho Branco” (1917) é pintura que pode ser comparada à uma carta de amor dedicada à sua esposa, que aparece sobre uma paisagem pastoral exuberante, maior do que a vida, como uma Virgem Maria. Chagall dizia que só se interessava pelo amor e pelas coisas boas geradas a partir desse vibrante sentimento. Aos pés de Bella, podemos ver duas pequenas figuras que, provavelmente, representam Chagall e Ida, a filha do casal.

Acho genial um artista ter a sensibilidade e a capacidade de ser influenciado por tudo o que acontece ao seu redor. Chagall era assim, mas os movimentos artísticos da época só funcionavam como um combustível para acelerar sua própria narrativa, que é um verdadeiro enigma para o descobrimento de sentimentos. Os símbolos transmitidos em sonhos estão todos lá, só precisamos abrir bem os olhos e encantar nossas almas para conseguir enxergar o que há de mais profundo em suas pinturas. Quando conseguimos isso, aquele frio na coluna indescritível vem com tudo para lembrar o quanto genial a arte pode ser em nossas vidas. Se tiver uma boa história para compartilhar, aguardo sugestões pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou no Twitter.