Certa vez pediram para o rei do futebol falar sobre o rei dos estádios.

Pelé qualificou o Maracanã assim:

— Uma vitória ali vale por duas em qualquer outro campo do mundo.

Vindo de quem veio a definição, está claro que a majestade do Maracanã é incontestável: sempre foi, desde a sua fundação em junho de 1950, continua sendo nesse momento em que completou setenta anos de existência na terça-feira 16, e sempre será apesar de tantas reformas arquitetônicas que sofreu desde 2005, quando passou

também a ser alvo desvio de dinheiro por uma série de governantes. Antes de entrarmos, no entanto, no glorioso gramado do campo de sua história para valer, dê-se voz para “A Voz”. Não sem motivo Frank Sinatra ganhara esse merecido apelido que correu em todo o planeta. Ao pisar o Maracanã, em 1980, no ensaio para a sua apresentação, “A Voz” exclamou:

— My God!

Alcyr Cavalcanti

Pronto: já não resta dúvida sobre a grandeza do popularmente chamado “Maraca” — não precisa de árbitro de vídeo para confirmar sua importância histórica. O Maracanã faz setenta anos e lembremos então de seu nascimento, na zona norte do Rio de Janeiro. Goste-se ou não de futebol, é no mínimo falta de interesse cultural visitar a cidade sem passar pela rua Professor Eurico Rabelo, aonde ele se localiza. Pode-se dizer que o Maracanã nasceu com fórceps, em 1950, para sediar a Copa do Mundo no Brasil. Nasceu com fórceps porque foi desmedida a luta do jornalista Mário Filho para a sua construção — contra ele estava o poderoso deputado Carlos Lacerda, que, aliás, depois passou a frequentar amiúe o estádio. Venceu essa dura partida Mário Filho, que dá nome ao campo (irmão do jornalista e um dos principais dramaturgos brasileiros, Nelson Rodrigues). O Maracanã foi então inaugurado na Copa, no mês de julho, e lá segue ele, septuagenário, com ferro em sua estrutura na quantidade suficiente para dar duas voltas ao redor da Terra. A capacidade inicial abrigava um público de 155.250 pessoas, mas após as reformas acolhe apenas 78.838 espectadores — e já não é o maior do mundo, perdeu o título para o Estádio Azteza, no México.

“A VOZ” e o “REI” Frank Sinatra (acima), no Maracanã, em 1980, e Pelé ao marcar o seu milésimo gol, contra o Vasco, em 1969, no mesmo estádio: palco de grandiosos acontecimentos históricos (Crédito:Divulgação)

Os brasileiros se orgulham do “Maraca”, de tantas glórias e tristezas para os torcedores, de tanta rede balançando, de tantos gritos de gols e de um fúnebre silêncio… Fúnebre silêncio? Sim: 16 de julho de 1950, final da Copa do Mundo, a seleção brasileira só carecia do empate. Maracanã, ainda em obras, abarrotado de gente. Só o empate e o título seria nosso. Só o empate, e veio o primeiro gol do Brasil. O locutor quase perdeu para sempre as cordas vocais: “gooooooool de Friaaaaaça, vem abaixo o Maracanã!”. Diante do Brasil havia o Uruguai. E acontece o gol de empate. Pouco importava, como já se frisou, ainda assim a Taça Jules Rimet estaria ganha. Aliás, Jules Rimet, em pessoa (morreu seis anos depois), vai para o vestiário neutro com a taça de ouro sob o braço. O barulho da torcida é ensurdecedor. A partida (na época se falava frequentemente contenda) está acabando e o Brasil empatando. Quando começa a retornar com taça, Rimet estranha: faz-se um silêncio de ouvir lágrimas escorrendo. Ele olha o placar, a seleção uruguaia virara o jogo. Dois a um, gol fatídico de Ghiggia. Uruguai campeão. “Foi o mais espetacular silêncio da história do futebol”, analisou, tempos depois, Eduardo Galeano, historiador uruguaio, autor de “Las Venas Abiertas de America Latina”. A autoestima dos brasileiros despencou. Foi o maior trauma nacional, aumentado após quatro anos com o suicídio de Getúlio Vargas, mergulhado no “mar de lama”, expressão que o mesmo Lacerda criou.

O Maracanã nasceu democrático, romântico até: os torcedores, por mais que sofressem fisicamente, amavam o fosso que cercava o campo, a fossa da geral em que se assistia em pé ao jogo — via-se mais as pernas dos jogadores driblando, como em documentários do canal 100, do que a partida em si. Os ouvidos dos técnicos ficavam à mercê dessa geral, e também disso os “geraldinos” (termo de Nelson Rodrigues) gostavam: eram noventa minutos com o treinador, do time que estava perdendo, tendo de ouvir: “burro!”, “burro!”, “burro”. Os torcedores das arquibancadas, de bom poder aquisitivo, se tornaram os “arquibaldos”. Em 2005, numa de suas primeiras reformas, os “geraldinos” perderam a vez. O fosso acabou e o campo foi rebaixado dois metros. O romantismo começava a morrer. Outras obras vieram, necessárias para a Copa das Confederações, Copa do Mundo em 2014, Jogos Olímpicos de 2016. Mas o “Maraca” seguia sendo o templo do futebol e nem a presença do papa João Paulo II, em 1997, bateu o recorde de público de jogos interclubes.

Alento aos doentes da Covid-19

Com tais reformas, viu-se o o estádio em meio às negociatas de governantes com empreiteiras, seu nome foi parar recentemente até na Lava Jato. Mas, bem antes disso, houve uma glória. E que glória! Ele, o rei, marcou em 1969, no Maracanã, em um jogo contra o Vasco e de pênalti, o seu milésimo gol (embora o artilheiro do estádio seja Zico, com 334 gols). Nossas idas e vindas nessa história, nosso não seguir linearmente no tempo, são intencionais. É bom, portanto, voltar a falar de Pelé! É bom falar que em setenta anos o Maracanã é citado em pelo menos trinta sambas. Um deles, clássico, é de Herivelto Martins: “deixei embaixo do rádio uma nota de cinquenta/vai à feira, joga no bicho e vê se te aguenta/economiza, olha o dia de amanhã/eu preciso do troco/domingo tem jogo/no Maracanã”. Mas nem tudo é música e festa. Ghiggia, o carrasco de 1950, costumava dizer que ele era o responsável pelo maior silêncio do estádio. Antes fosse, porque um jogo de futebol é só um jogo de futebol, e hoje há um silêncio maior com o jogo da vida: no Maracanã está montado um hospital de campanha para Covid-19. Aos pacientes, o verde de seu campo alenta. Verde, cor de esperança. Esperança de sobrevivência.
Colaborou Mariana Ferrari