21/06/2024 - 8:00
Da surpresa inicial diante de uma tela de computador, Gabriel Nocchi Macedo passou por um verdadeiro alvoroço da mídia internacional pelo “pequeno pedaço de papiro mutilado, com apenas 11 por cinco centímetros e até feioso, que se revelou um tesouro”. E agora reflete sobre “a importância da pesquisa individual” — no caso, de dois especialistas — “dentro de um esforço colaborativo que pode reavaliar todo um trabalho da ciência”. Esse é o resumo do que o professor gaúcho da Universidade de Liège, na Bélgica, e o húngaro Lajos Berkes, da Universidade de Humboldt em Berlim, na Alemanha, revelaram ao mundo: o conteúdo daquele fragmento com estimados 1.600 anos, onde é descrito um milagre de Jesus de Nazaré ainda criança, com passarinhos que moldou em barro ganhando vida.
A “pecinha de um quebra-cabeça” chamou a atenção dos dois amigos quando pesquisavam, na biblioteca da Universidade de Berlim, papiros digitalizados pela Universidade de Hamburgo. Essa coleção tinha sido adquirida entre 1906 e 1913 e adicionada com compras extras até 1939, mas só teria sido inventariada pela universidade em 2001.
Quando observaram o pedaço catalogado como número 1011, se deu o espanto: detectaram três letras de grego antigo, com som de “ies”, que remetiam a “de Jesus” em um papiro escrito há 1.600 anos. “Nunca tínhamos ouvido falar sobre aquele texto”, conta Macedo, com formação em Letras Clássicas (grego antigo e latim) e hoje diretor do Centre de Documentation de Papyrologie Littéraire (Cedopal). “Tamanha foi a surpresa, com a menção a Jesus em documento daquela data, que resolvemos ir até Hamburgo e conferir o fragmento original”, conta o professor. Na sequência, explica, foi preciso que os dois passassem um ano “se educando em literatura cristã”, enquanto seguiam com pesquisas comparativas.
O mais antigo
A prova de fogo, como classifica o professor, foi um ano depois, com o convite para a dupla participar de uma conferência em Praga, na República Checa, com teólogos voltados especificamente para o chamado “Evangelho da Infância de Jesus”, apócrifo mas atribuído a São Tomé. O grego antigo encontrado no fragmento, diz Macedo, era “a língua de cultura” e por isso também utilizado por escribas do Oriente Médio e do Egito — de onde muitos desses papiros foram levados para a Europa.
Pela forma dos caracteres e das linhas, o papiro estudado pela dupla era de um aprendiz, talvez se exercitando como copista em um mosteiro. E foi decifrado pelos dois pesquisadores como sendo o trecho inicial de uma versão em grego antigo do “Evangelho da Infância de Jesus”, de 1.600 anos atrás — agora a mais antiga que se conhece. O original remontaria aos séculos IV e V, mas não existem fontes documentadas por escrito que atestem essa data — há apenas compilados posteriores, em várias versões e em diversos idiomas.
Macedo e Berkes também compararam o ‘papiro mutilado’ a outros manuscritos, que levassem a decifrar o conteúdo do fragmento. Assim chegaram à passagem do milagre na infância de Jesus, um período até então nunca mencionado (entre o nascimento e os cinco anos de idade) por estudiosos. O que também ajudou — e muito, segundo o pesquisador brasileiro — na identificação do texto do “papiro mutilado” foi o banco de dados colocado na internet pela Universidade da Califórnia, que partiu de um dicionário impresso para contar hoje com a digitalização completa de todos os textos gregos de que se tem conhecimento, da Antiguidade à Idade Média.
Os especialistas em papirologia, destaca o professor, são muito colaborativos e não é impossível que se encontrem outros fragmentos que contribuam com a descoberta divulgada neste mês como “O Manuscrito Mais Antigo do Chamado Evangelho da Infância de Tomé”, por Lajos Berkes e Gabriel Nocchi Macedo.
Há coleções de papiros recolhidas por universidades europeias como da França, Itália, Inglaterra — principalmente a partir da metade do século XX —, que também contam com textos medievais já mais conhecidos em suas bibliotecas e que ajudam nas pesquisas. Segundo o professor, a divulgação do trabalho da dupla também reverberou entre a mídia cristã, pelo ineditismo do conteúdo sobre o milagre de Jesus aos cinco anos de idade. Mas os dois mantêm sua postura acadêmica, afirma Macedo, e a alegria por uma divulgação maior da papirologia, forte em universidades da Europa e EUA, mas até agora ainda pouco conhecida no Brasil.