Começaram a circular neste fim de semana dois manifestos que pedem que as diferenças políticas sejam deixadas de molho em prol da democracia, do bem comum e da derrota do bolsonarismo.

O Estamos Juntos foi publicado no sábado, em jornais de grande circulação e na internet, com os nomes de intelectuais e artistas de renome. No domingo saiu o Basta!, uma iniciativa de profissionais do Direito. Os dois ganharam tração rapidamente, angariando milhares de apoios. Na manhã de hoje, o site do Estamos Juntos computava mais de 250 mil assinaturas.

Ao mesmo tempo, já havia surgido a primeira defecção de peso. Luiz Inácio Lula da Silva, ele mesmo, avisou que não quer participar. O petista se irritou ao ver entre os signatários originais dos documentos gente que foi a favor do impeachment de Dilma Rousseff. “Não tenho mais idade para ser maria-vai-com-as-outras”, disse ele.

Convenhamos, não chega a ser uma surpresa.

Sei que ninguém faz um manifesto para se conformar com a situação do mundo. Se algum dia já existiu um “Manifesto Conformista”, foi como ironia. A graça dos manifestos está justamente em tentar produzir algo novo. Mas a realidade não sai de férias por causa disso.

Acho salutar que Lula tenha se expressado com tanta crueza. Ele repôs uma dose indispensável de realpolitik na conversa. Deixou exposta uma premissa especialmente furada do Estamos Juntos: a ideia de que o Brasil pode ser dividido em duas partes.

De um lado estariam os bolsonaristas empedernidos, um grupo que hoje não chega de 30% dos brasileiros. (Vale notar, como curiosidade, que o manifesto jamais menciona Bolsonaro e sua turma. Eles são uma presença inominada, como Voldemort nos livros de Harry Potter.)

De outro lado, estariam todos os demais, dispostos a pôr entre parênteses suas divergências em nome de do futuro da nação. “Somos mais de dois terços da população”, diz o texto.

A matemática, no entanto, é diferente. Pois além do bolsonarismo, existe o lulo-petismo. E o lulo-petismo não compõem nem comporá com ninguém. Ele só se sente à vontade quando é hegemônico. Além disso, sua maior preocupação é salvar dos escombros sua imagem corroída, em vez de “criar um projeto comum de país”.

Desconfio que muita gente que assinou o Estamos Juntos até já deu um passo atrás depois da refugada de Lula. Pode não retirar o apoio explicitamente, mas vai deixar para lá essa coisa de maria-vai-com-as-outras. E que assim seja.

A ideia do “somos mais de dois terços” é bacana, mas falsa. Como diria Fernando Pessoa, é “querer a grandeza qual a sorte a não dá”.

Digamos que o lulismo e o bolsonarismo reúnam algo em torno de 50% dos brasileiros. Estou fazendo cálculos de padaria, arredondando números de antigas pesquisas de preferência eleitoral. A frase do Estamos Juntos tem de ser reformulada: “Somos metade da população.” Ou, com sorte: “Somos mais da metade da população.”

Não é tão vistoso quanto na versão anterior. Mas ainda é gente o bastante.

Acredito que, neste momento, o espaço político que tem de ser consolidado é aquele que se contrapõe simultaneamente ao lulismo e ao bolsonarismo. Dele pode sair a plataforma que, nas próximas eleições, leve o Brasil adiante.

Chame esse espaço como quiser. Centro autêntico (para evitar as conotações negativas de “centrão”). Centro radical (para usar uma expressão célebre na política americana). Espaço dos moderados. Espaço dos isentões. Deixo para outros a tarefa de redigir um manifesto com as palavras mais bonitas e inspiradoras.

O essencial é que existe uma batalha a ser travada em duas frentes. Munição não falta, inclusive para mostrar as muitas equivalências entre Lula e Bolsonaro. Volto ao assunto em outro texto, pois ele é particularmente importante (e divertido).

Encerro falando do segundo manifesto, o Basta!.

É um texto mais duro, enfezado. Em comparação com o Estamos Juntos, pode ser chamado de minimalista. Seu objetivo é um só: conter o presidente e seus apoiadores buliçosos, na medida em que eles se mostram dispostos a “arruinar com os alicerces de nosso sistema democrático”.

É certo que não se trata de um perigo imaginário. O fantasma da intervenção militar, que rondava as falas do candidato Jair Bolsonaro na campanha de 2018, ganhou corpo em seus dezoito meses de governo. Inepto na articulação política e no uso das ferramentas jurídicas cabíveis num Estado de Direito, o governo respondeu com impropérios sempre que se viu contrariado. Quanto mais tensionado o ambiente, mais palpável tornou-se a tentação de chamar os tanques.

Antes de Bolsonaro, a ideia de um país tutelado pelas Forças Armadas parecia estar completamente superada. O artigo 142 da Constituição servia apenas como base para a realização de Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) — aquelas em que as Forças Armadas desempenham papel de polícia.

Depois de Bolsonaro, o “um, quatro, dois” passou a legitimar a interferência dos militares na política, em nome de uma hipotética restauração da harmonia entre os poderes. A ideia tem seus defensores incendiários, como o deputado Eduardo Bolsonaro, seus defensores cavilosos, como o ministro Augusto Heleno, e até seus teóricos, como Ives Gandra Martins Filho — nosso Carl Schmitt inzoneiro.

Diante disso, o Basta! vai direto ao ponto. Não tem pretensões políticas trancendentais. Pede apenas consenso em torno de um mínimo denominador comum: respeito ao Estado de Direito, para evitar a qualquer custo o retrocesso democrático.

Manifesto por manifesto, o Estamos Juntos pode até ser mais bonito. Mas prefiro o Basta!