Filmes, séries, livros, documentários e, mais do que nunca, podcasts de “true crime”, ou seja, baseados em crimes reais, têm caído cada vez mais no gosto popular nos últimos anos. Não que isso seja uma novidade, sempre existiram produções culturais que mostram os pormenores de crimes que chocaram a sociedade. Mas, sem dúvidas, houve um crescimento na produção desse tipo de conteúdo nos últimos tempos.

A “nova onda” de true crime começou nos podcasts. Em 2019, o podcast “My Favourite Murder” arrecadou cerca de 15 milhões de dólares, ficando em segundo lugar no ranking de podcasts mais lucrativos do mundo, segundo a Forbes. No Brasil, títulos como “Sala de Interrogatório”, “1001 Crimes”, “In Casu”, “Pátria Amada Criminal” e mais recentemente “A Mulher da Casa Abandonada” tem rendido um número cada vez maior de ouvintes. Logo depois, começaram a pipocar novas séries e documentários do gênero, como “O Caso Evandro”, “Conversando com um serial killer: Ted Bundy”, “Elize Matsunaga: Era uma vez um crime” e, mais recentemente, “Pacto Brutal: o Assassinato de Daniella Perez”.

Mas, o que de fato leva pessoas a assistirem relatos e detalhes de crimes hediondos como entretenimento? Para Priscila Gasparini Fernandes, doutorado pela USP e neuropsicanalista, isso é um comportamento normal e esperado. “O ser humano sempre teve interesse em relação a crimes e violência, desde a antiguidade quando haviam espetáculos em praças públicas para ver os criminosos sendo punidos”, explica. “Hoje, apenas mudamos para as séries e filmes de reconstruções de crimes. Psicologicamente, existe um alivio no indivíduo que assiste este conteúdo: ver que algo aconteceu com outra pessoa e não com ele ou com algum familiar”, esclarece.

Ou seja, o espectador sente um alívio ao ver o crime que não tem nada a ver com ele, e pode, de uma maneira distante, avaliar o crime, suas causas e consequências. ”A curiosidade é a chave em relação ao fascínio da violência. As pessoas tem o interesse e, por curiosidade, querem acompanhar o caso, assistir e avaliar cada detalhe, mas de uma maneira segura, onde não correm perigo, em um ambiente controlado”, explica.

Mulheres e true crime

As mulheres são o público majoritário de produções de true crime, principalmente quando a vítima é outra mulher. Um estudo de 2010 da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign descobriu que as mulheres tendem a ser mais atraídas por histórias de crimes reais do que os homens, e que estão mais interessadas em histórias que dão uma visão dos motivos do assassino e que contêm informações sobre como as vítimas escaparam. Há, inclusive, um grande número de fãs que dizem se acalmar ao consumir tais produções e muitas inclusive alegam dormir ouvindo podcasts do gênero.

Para Fernandes, como mulheres são a maior parcela das vítimas de crimes hediondos, é normal que sejam elas que consumam mais desse conteúdo. “Existe uma identificação quando assistimos esses casos de violência. Muitas mulheres se projetam como se estivessem vivenciando o caso, lidam com a agressividade, a vitimização, a manipulação, e acabam elaborando conteúdos inconscientes. Não existe o desejo real de assassinato, ou de qualquer outra condição destes casos, apenas, ao lidar com estes conteúdos, há um processo inconsciente de elaboração destes traços”, disse. Ou seja, o público feminino aprende a se proteger da violência contra a mulher ao absorver a experiência de outros casos.

Faz mal?

Diante de um cenário de crise humanitária, política e cultural que o mundo vive, seria natural se imaginar que o consumo de conteúdos violentos poderia piorar questões de saúde mental, incrementando a ansiedade diante da violência e pobreza ou gerando mais depressão ao ver as consequências dos crimes em vidas reais. Para a Dra Priscila Gasparini Fernandes, curiosamente, esse não é o caso. “O crescimento de consumo por parte público a esses conteúdos tem relação com a curiosidade, e também com a ideia de resolver os casos, como se fosse atuar na investigação, na resolução do problema. Essa atividade gera uma sensação de recompensa, libera neurotransmissores que dão a sensação de prazer no indivíduo”, acrescenta.

Também pode existir uma questão evolucionária. Segundo a Dra. Marissa Harrison, psicóloga e professora da faculdade Penn State Harrisburg, em entrevista a publicação Hopes & Fears, as pessoas estão interessadas em crimes reais porque evoluímos para prestar atenção às coisas que podem nos prejudicar, para que possamos evitá-las melhor. “No ambiente ancestral, aqueles que ‘sintonizaram’ eventos horríveis deixaram mais descendentes porque conseguiram escapar de estímulos nocivos”, disse ela.

Contudo, as produções de true crime podem levar o público a equívocos e má interpretações de como a violência realmente acontece. O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, o número chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), e as séries de true crime normalmente trazem histórias de vítimas que são mulheres brancas. Contudo, ainda segundo a OMS, 62% dessas mulheres são mulheres pretas.

Muitas produções de true crime trazem histórias de serial killers que também cometiam crimes sexuais, inclusive mostrando a forma como esses criminosos escolhiam suas vítimas. Contudo, ainda segundo os dados da OMS, 81% desses crimes são cometidos por ex-companheiros e não criminosos em série. Portanto, o importante é consumir esses conteúdos sabendo que são apenas histórias adaptadas para que se tornem produtos de entretenimento e que nem sempre são uma projeção fiel da sociedade.