O Estadão deu um furo importante hoje, revelando que tramitam no escurinho do Congresso projetos de lei orgânica para as polícias Militar e Civil, que teriam como consequência “ampliar a independência” das corporações em relação aos governos estaduais, aos quais elas estão subordinadas pelo o artigo 144 da Constituição.

Segundo a apuração do jornal, os comandantes das polícias passariam a ser escolhidos com base em uma lista tríplice e contariam com um mandato fixo de dois anos, só podendo ser exonerados pelos governadores em circunstâncias específicas, com clara justificativa.

Os deputados da bancada da Segurança Pública que lideram a iniciativa no Congresso dizem que o objetivo é livrar os comandantes das forças de “mordaças e pressões políticas”, para que as polícias possam “cumprir sua função com autonomia”.

O projeto tem outros objetivos, que vão da padronização nacional dos uniformes à criação de novas patentes, e não vou entrar nos seus méritos. O plano de enfraquecer o controle do Executivo sobre as polícias, no entanto, precisa ser abortado a todo custo.

O Estado moderno passou a existir quando tomou para si o monopólio do uso da força e aboliu as brigadas e os exércitos particulares. Essa é uma das razões por que gente como Trump e Bolsonaro, que encoraja a existência de milícias e justiceiros, pertence a um mundo pré-moderno, de 500 anos atrás.

Os Estados democráticos deram um passo além.  Puseram Exército e polícia a serviço de políticas de segurança que não são estabelecidas por eles próprios, nem por um rei, mas por governos eleitos.

O projeto que tramita no Congresso quer dar mais espaço às polícias para que possam decidir o que é certo e errado na segurança pública. E, ao tirar as supostas “mordaças” das bocas dos comandantes, quer que eles possam questionar, contestar ou rejeitar em público ordens dos governadores, minando a autoridade civil.

Comandantes das polícias militares terão o poder da palavra (que cabe aos políticos), o poder da sua autoridade sobre a tropa e o poder do fuzil nas costas e da pistola na cintura. Difícil imaginar um atalho mais curto para o autoritarismo.

Ah, mas o Judiciário e o Ministério Público têm autonomia e são muito poderosos no Brasil de hoje, não é verdade? Ainda assim, as duas instituições não têm armas. Só o Exército e a polícas as têm. E é por isso que precisam ficar sujeitas a uma lógica estrita de subordinação a outros poderes, sem chefes indemissíves e sim, com regras bem rígidas sobre aquilo que podem e não podem dizer em público.

Vamos descer das abstrações. Embora não possam legalmente fazer greve, policiais vira e mexe cruzam os braços. Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, fizeram isso de maneira extremada em vários Estados, chegando a ferir um senador a bala. Em quase todas as situações houve ampla anistia. Se agem assim subordinados ao governo, o que acontecerá quando eles acharem que são uma unidade independente dentro do Estado?

As Forças Armadas caíram na esbórnia no governo Bolsonaro. Aparelharam a administração federal, às vezes ocupando cargos para os quais os oficiais não estão preparados – vide Eduardo Pazuello. Fatias polpudas do orçamento têm sido destinadas aos militares. É  preciso reconhecer, no entanto, que a cúpula das Forças Armadas tem fugido à tentação de conquistar “autonomia”, como querem os policiais. Não fosse a autocontenção desses comandantes, o Brasil já teria descambado para a situação da Venezuela, apenas com sinal ideológico trocado.

Ao contrário das Forças Armadas, os policiais há tempos se lançaram na política, e com muito gosto. São centenas de majores, sargentos, cabos e delegados com mandatos eletivos Brasil afora. Eles cuidam zelosamente dos interesses corporativos de suas categorias, além de influir em todas as outras decisões políticas da esfera onde atuam. Esse deveria ser o limite da sua ambição.