O número de menores que teriam sofrido abusos sexuais por parte de religiosos católicos na Espanha desde 1940 seria superior a 200.000, de acordo com um primeiro grande relatório divulgado nesta sexta-feira (27) por uma comissão independente sobre este flagelo no país, onde as vítimas denunciam há anos a omissão da Igreja Católica.

O informe não fornece um número exato, mas inclui um pesquisa feita a pedido da comissão com a participação de 8 mil pessoas, segundo a qual 0,6% da população adulta espanhola (em torno de 39 milhões de pessoas no total) afirmou ter sofrido abuso sexual por parte de membros da Igreja Católica quando eram menores.

A marca aumenta para 1,13% (mais de 400 mil pessoas) deste grupo quando se contabilizam abusos cometidos por laicos em ambientes religiosos, detalhou em uma coletiva de imprensa Ángel Gabilondo, Defensor do Povo, que coordenou a comissão que atuou na elaboração do relatório por um ano e meio.

Gabilondo, ex-ministro da Educação socialista, afirmou que houve casos desde a década de 1940, mas que a maior parte deles ocorreu entre 1970 e 1990.

A comissão de especialistas entrevistou 487 vítimas de abusos sexuais, que ressaltaram “os problemas emocionais” causados, como o estresse pós-traumático, que atingiu um terço deles, relatou o Defensor.

Para ele, que nesta sexta-feira fez a entrega oficial do material de mais de 700 páginas ao Congresso espanhol – que o encomendou em março de 2022 -, o texto é uma “resposta” ao “sofrimento e à solidão” dos afetados.

– “Negação dos abusos” –

Diferentemente do que houve na França, Alemanha, Irlanda, Estados Unidos ou Austrália, nunca houve a publicação de resultados de uma investigação sobre pedofilia no clero da Espanha, país tradicionalmente católico.

Na França foram registrados 216.000 menores vítimas desde 1950, na Alemanha, 3.677 casos entre 1946 e 2014, e na Irlanda, mais de 14.500 pessoas foram indenizadas.

Na Igreja Católica espanhola “lamentavelmente durante muitos anos houve o predomínio de certa negação dos abusos ou ocultação ou proteção dos abusadores”, denunciou o Defensor do Povo.

O relatório também recomenda “a criação de um fundo estatal para o pagamento de indenizações” às vítimas, acrescentou.

A Igreja Católica, que por anos recusou a participação em pesquisas, rejeitou participar da comissão, embora tenha fornecido documentos.

A Conferência Episcopal, que não reagiu de imediato ao relatório, convocou uma assembleia extraordinária para segunda-feira (30) para definir sua posição.

À medida que a pressão política aumentou, a Igreja anunciou em fevereiro de 2022 uma auditoria própria e a encomendou a um escritório de advogados, que planeia concluí-la antes do final do ano.

A Igreja se defende dizendo que implementou protocolos de ação contra abusos e instalou escritórios de “proteção aos menores” nas dioceses.

– “Válvula de escape” –

A publicação do relatório era muito aguardada pelas vítimas.

O documento “é um reconhecimento público de que as situações (os abusos) existem”, disse à AFP José Alfonso Ruiz de Arcaute, que denunciou assédios sexuais de um frade em uma paróquia de Vitória, no País Basco (norte), em 1982, quanto tinha 13 anos.

“Significa uma válvula de escape para as vítimas, porque por décadas fomos totalmente ignorados e minimizados e este relatório deve servir de estímulo para que os poderes públicos façam seu trabalho” de reparar os afetados, “já que a Igreja não o fez”, afirmou Juan Cuatrecasas.

Cuatrecasas é membro fundador da associação Infância roubada e pai de um jovem abusado por um professor em uma escola católica na cidade basca de Bilbao, entre 2008 e 2010.

A instituição colaborou estreitamente com a investigação do Defensor do Povo e alegou que o presidente do escritório de advogados contratado pela Igreja, Javier Cremades, pertence à Opus Dei, uma congregação católica muito conservadora.

Algumas vítimas pediram que o relatório sirva para que o Congresso produza uma lei para prestar assistência e reparação às vítimas.

“Toda a dor que infligiram” não pode ser corrigida “apenas com palavras”, disse Francisco Javier Méndez, abusado quando menor com o seu falecido irmão gêmeo, por um padre em um seminário em León (noroeste), entre 1988 e 1989.

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