Especializada em Uroginecologia pela Escola Paulista de Medicina, a médica ginecologista Luiza Russo de Morais diz que uma das razões que levam as mulheres brasileiras a terem maiores problemas no parto e até a se exporem mais ao aborto é a falta de planejamento nas gestações. Para ela, o ideal é que um número maior de mulheres e adolescentes usassem sistemas contraceptivos, como o DIU, para evitar gravidez indesejada.

“Para podermos entender o impacto do uso do DIU em larga escala, podemos comparar o Brasil com o Reino Unido. Na Inglaterra, 31% das mulheres usam métodos contraceptivos de longa duração (DIUs) e a taxa de gestação não planejada é de 16,2%. No Brasil, apenas 2% das mulheres usam esses métodos, de forma que mais da metade das gestações no País não são planejadas.”

Segundo Luiza de Morais, o que leva as mulheres brasileiras a não planejarem a maternidade são problemas sócio-econômicos. “Infelizmente, esse é um fenômeno mundial e multifatorial. No Brasil, os maiores fatores determinantes de gestações não planejadas são a pobreza, a baixa escolaridade, ausência de uma cobertura anticoncepcional ampla, violência sexual, o casamento precoce, a falta de informação e obstáculos ao uso dos serviços de saúde, entre outras coisas”, diz a médica especialista reconhecida também pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia e com vários cursos de formação na Cleveland Clinic – hospital de referência nos EUA – , onde se aprimorou com procedimentos cirúrgicos em ginecologia. Eis a íntegra da entrevista exclusiva à ISTOÉ.

Por que metade das gestações no Brasil não são planejadas pelas mulheres brasileiras?
Infelizmente esse é um fenômeno mundial e multifatorial. No Brasil, os maiores fatores determinantes de gestações não planejadas são a pobreza, a baixa escolaridade, ausência de uma cobertura anticoncepcional ampla, violência sexual, o casamento precoce, a falta de informação e obstáculos ao uso dos serviços de saúde, entre outras coisas.

Você acha que a falta de planejamento familiar ocorre porque as mulheres mais pobres não têm acesso aos métodos contraceptivos ou esse é um problema generalizado entre as mulheres brasileiras?
A gestação não planejada é um problema global. A OMS estima que no mundo 50% das gestações não são planejadas. No Brasil, esse problema atinge todas as camadas sociais, mas com certeza mais em pacientes mais pobres (sabemos que população de baixo nível socioeconômico tem até cinco vezes mais gestações não planejadas ao se comparar com pacientes de nível socioeconômico elevado). Esse grupo mais vulnerável tem menos acesso à métodos contraceptivos, menor acompanhamento médico e educação sexual mais precária, etc. Para exemplificar: todas as sociedades médicas recomendam que, em adolescentes, a primeira escolha de anticoncepção seja o que chamamos de LARC – contraceptivos de longa duração, que são os DIUs e o Implanon. No SUS, alguns desses métodos estão disponíveis – principalmente o DIU de cobre. No entanto, sabemos que em muitos lugares a paciente não consegue nem agendar a consulta para obter maiores informações sobre o método e optar por ele. Sempre há fila de espera, a colocação é adiada pela solicitação de exames desnecessários e muitas equipes não têm treinamento adequado para colocação desses contraceptivos. Além disso, há casos em que a paciente consegue colocar o DIU, mas não consegue fazer um seguimento adequado para avaliar se o DIU está bem posicionado, o que impacta na eficácia do método. Enquanto isso, pacientes com mais renda conseguem ter acesso a esses métodos, com maiores opções contraceptivas e melhor acesso ao serviço de saúde. Para podermos entender o impacto do uso do DIU em larga escala podemos comparar o Brasil com o Reino Unido. Na Inglaterra, 31% das mulheres usam métodos contraceptivos de longa duração e a taxa de gestação não planejada é de 16,2%. No Brasil, 2% das mulheres usam esses métodos, de forma que mais da metade das gestações no País não são planejadas.

As escolas não estão educando bem as meninas e meninos sobre educação sexual e a necessidade de se planejar uma gravidez?
Difícil avaliar esse dado isoladamente. Sabemos que a gestação na adolescência é sempre multifatorial e a educação sexual é parte primordial da prevenção de gestação na adolescência. Mas a educação sexual tem que vir junto de estratégias cientificamente comprovadas para evitar a gestação na adolescência, como diminuir a evasão escolar, combater a violência sexual, fornecer contraceptivos eficazes, melhorar o acolhimento aos adolescentes em serviços de saúde, entre outras coisas. De cada seis partos que acontecem no Brasil, um é de uma adolescente, sendo que 70 % dessas meninas não tinham a intenção de engravidar e 75% das mães adolescentes não estavam frequentando a escola. Esses são dados da pesquisa Nascer Brasil 2016, do Ministério da Saúde, mostram que focar isoladamente em educação sexual nas escolas não vai reduzir a gestação na adolescência no Brasil. Acho válido também discutir sobre as politicas publicas de promoção de abstinência sexual no Brasil adotada pelo governo. Essa medida, isoladamente, é comprovadamente ineficaz. Estamos gastando dinheiro público com medidas como essa que tem reduzido muito lentamente as taxas de gravidez na adolescência, já que 95% das gestantes adolescentes têm entre 15 e 19 anos e não vão ser impactadas com esse tipo de estratégia, além de que nenhum estudo cientifico comprova que o estimulo a abstinência reduz a taxa de gravidez.

Você acredita que essa falta de planejamento tem levado a um maior número de abortos e óbitos materno e fetal no Brasil? Por quê?
Sim. Muitos casos de gestações não planejadas acabam em abortos induzidos. Esses casos não estão previstos em lei, mas ocorrem clandestinamente e de forma ampla em todas as esferas sociais. Na população mais pobre, principalmente, resulta em sangramento, infecção e morte materna. O aborto representa hoje a quarta causa de morte materna no Brasil, em grande parte devido à assistência precária em clínicas clandestinas. É a paciente pobre com uma gestação indesejada que procura uma clínica tem complicações e acaba morrendo pelas complicações que citei acima. Se reduzíssemos o número de gestações não planejadas poderíamos evitar um número significativo dos abortos induzidos e, consequentemente, das mortes maternas no País.

A senhora defende a manutenção da lei que permite que meninas e mulheres vítimas de violência sexual, ou quando a gravidez põe em risco a vida das gestantes, possam realizar o aborto legal?
Certamente. Isso não sou só eu que defendo, mas diversas sociedades médicas e a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, já que, como profissionais da Saúde, precisamos pensar do ponto de vista médico. Algumas morbidades, como hipertensão pulmonar, apresentam um risco de morte de até 50% na gestação, então eu acredito que sim, elas precisam ter a opção de interromper a gestação para preservar a vida delas. Já em casos de violência sexual, sabemos que grande parte das ocorrências acontecem em meninas de até 13 anos. Quando essas vítimas engravidam, elas tem que ter opção de interromper a gestação com segurança, caso contrário elas irão recorrer à opções clandestinas e ter ainda mais danos à sua saúde.

Por outro lado, estamos vendo o aumento da idade das gestantes no Brasil. Isso ocorre por que cada vez mais as mulheres estão privilegiando primeiro a carreira profissional, deixando a maternidade para mais tarde?
Extamente, temos observado um aumento gradativo da idade das gestantes brasileiras. Isso acontece, principalmente, nas populações com mais anos de estudo, que adiam a maternidade porque têm acesso à reprodução humana e porque se dedicam, dos 20 anos aos 30, para seu aperfeiçoamento e crescimento profissional. Essas mulheres hoje se consideram mais maduras psicologicamente e financeiramente para conceber a partir dos 30 anos, e optam por isso.

Essa postura de postergar a maternidade se deve, em grande parte, aos anticoncepcionais mais eficientes?
Acredito que não. Apesar de termos excelentes métodos com eficácia alta, eles ainda são usados por uma parcela baixa da população. Postergar a maternidade se tornou mais acessível pela evolução da medicina reprodutiva. Hoje conseguimos avaliar melhor a reserva ovariana, oferecer congelamento de óvulos e planejar uma gestação mais tardia, de forma que temos mais controle de fertilidade feminina e não só da sua anticoncepção.

Você defende que os anticoncepcionais sejam distribuídos de forma planejada para as meninas e mulheres mais pobres, como um projeto de governo?
Sim. O planejamento familiar já é um direito de todos os brasileiros e está previsto na Constituição. No entanto, sabemos que existe uma desigualdade marcante no País no que se refere ao acesso à saúde e contracepção. Precisamos de políticas direcionadas às populações mais pobres visando diminuir esse abismo. Dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS), de 2006, apontaram que o percentual de mulheres de 15 a 44 anos que não usavam nenhum método anticoncepcional na classe mais baixa era quase o dobro que o de mulheres com maior poder aquisitivo.

É fato que 20% das gestantes brasileiras hoje já têm mais de 35 anos? Essa idade é considerada avançada e pode provocar gestações de risco?
Os dados do IBGE revelam que, dos nascidos vivos em 2020, cerca de 16% eram filhos de pacientes acima de 35 anos. Essa porcentagem é ainda maior se considerarmos todas as gestantes que abortaram ou tiveram um óbito fetal, estimando cerca de 20% de gestantes acima de 35 anos no País.

Os riscos são atenuados, no entanto, com os avanços da reprodução humana que têm permitido gestações mais seguras, não?
A reprodução humana permite uma gestação mais segura em relação ao feto, principalmente em alterações cromossômicas que sabemos que aumentam com a idade materna. Infelizmente, apesar de permitir uma liberdade maior para a mulher engravidar, a reprodução humana ainda não atenua os efeitos de gestar em idade mais avançada. A literatura médica varia em relação ao que deve ser considerado uma idade de risco para gestação, alguns usam 35, outros 40 anos como fator de risco. Mas sabemos que acima dos 35 anos aumenta a chance de complicações como diabetes, pré-eclampsia, hemorragia pós parto e aborto espontâneo. Por isso, é importante que mulheres que optem por adiar a maternidade tenham acompanhamento médico e um estilo de vida saudável, o que pode atenuar significativamente os riscos impostos pela idade avançada.

Há limite de idade para uma mulher gerar um bebê hoje? Afinal, até recentemente se falava que a gravidez depois dos quarenta anos era mais complicada e havia um risco maior de se ter um feto malformado, etc. Mas temos visto atualmente mulheres engravidando com sucesso em idades superiores aos quarenta.
Os riscos infelizmente continuam os mesmos. Há muito mais risco de malformações fetais a partir dos 40 anos, além de complicações maternas que já citamos, aborto, óbito fetal. Realmente vemos muitas mulheres acima de 40 anos engravidando com sucesso, o que passa uma falsa impressão de que não há mais riscos, mas eles existem e são significativos.

Os métodos da reprodução humana estão acessíveis só para mulheres com maiores recursos financeiros ou eles estão disponíveis também para mulheres mais pobres?
Hoje a reprodução humana é mais acessível do que há 10 ou 20 anos, mas ainda é algo muito caro para a maior parte da população. São pouquíssimos serviços no SUS que fornecem tratamentos como fertilização in vitro ou inseminação artificial. Por isso, o acesso à reprodução humana ainda é elitizado no Brasil.