Filmes e livros recentes trazem mulheres diversas que põem em xeque o amor que sentem pelos filhos

O conceito de maternidade vem carregado de clichês. Geralmente, as mães são vistas como protetoras e redentoras e estariam sempre dispostas a se sacrificar pelos filhos. Há, no extremo oposto a esses clichês, a figura da mãe perversa que, tal como em Medeia, de Eurípides, se volta contra a prole. A divisão do comportamento materno entre esses dois extremos se perpetuou até bem recentemente. Mesmo em um filme como Uma Canta, a Outra Não, de 1977, da cineasta francesa feminista Agnès Varda, a maternidade pende para apenas um desses lados. Nele, as mães, embora lutem pela liberdade e pelo direito ao corpo e ao aborto, ao darem à luz, não põem mais em xeque o amor por seus filhos.

A propósito das mães no cinema, este ano elas ganharam destaque no Festival de Veneza. Dois filmes trataram do tema: L’Événement, de Audrey Diwan, que levou o Leão de Ouro, e Madres Paralelas, de Pedro Almodóvar, que deu a Penélope Cruz o prêmio de melhor atriz. No filme do cineasta espanhol, que costuma de falar de maternidade, o destaque foi para as mães imperfeitas, ou seja, aquelas que não são nem Madame Bovary, personagem do romance homônimo de Gustave Flaubert, cuja maternidade não a sensibiliza, nem Stella Dallas, protagonista do livro de mesmo nome de Olive Higgins Prouty, que sacrificou sua felicidade pelo bem-estar da filha.

As mães imperfeitas estariam num entrelugar e não nas extremidades: elas põem em xeque o amor que sentem pelos filhos, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, sabem que os amam; não querem abdicar de seu bem-estar em favor da prole, mas estão sempre cedendo em benefício dela.

Essas mães com sentimentos contraditórios parecem estar em alta também na literatura atual; elas protagonizam pelo menos três livros de autoras contemporâneas que, coincidentemente, acabam de ser publicados no Brasil: Raiva, da escritora norueguesa Monica Isakstuen, em tradução de Leonardo Pinto Silva; Pequenas Resistências, da canadense-americana Rivka Galchen, em tradução de Taís Cardoso, e Precoce, da argentina Ariana Harwicz, em tradução de Francesca Angiolillo.

Nos três livros, a figura materna não é mais aquela que conhecemos, cercada de lugares-comuns com os quais estamos habituados a lidar. Ela é mais complexa, sente raiva, descarrega a raiva e as frustrações nos filhos, sente-se culpada, mas segue errando. Algumas dessas mães agem como se fossem filhas dos filhos. Há ainda aquelas que olham para suas crianças como se elas fossem objetos, parte da paisagem, ou de experimentos abertos a elaborações filosóficas.

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Em Raiva, a protagonista, depois de dar à luz gêmeos, vive à beira de um ataque de nervos e atrás de um tempo só para ela: “será que esta noite terei o tempo que tanto ansiava, a chance de pensar em paz, preparar a comida sozinha, ser um corpo sozinho?”. A frustração aumenta quando ela se compara a outras mães que parecem lidar com desenvoltura com todas essas questões. Pressionada por ela mesma, desconta no marido e nos filhos a sua insatisfação: “O coração bate acelerado e ameaçador no corpo, o sangue ferve, eles chegam perto demais, eles demandam muito, jamais se saciam do meu cada vez mais diminuto eu.”

Ao mesmo tempo, vendo os filhos adormecidos, ela conclui que os ama, que deveria ser mais tolerante com eles, mas segue falhando.

O conflito dessas mães imperfeitas e contraditórias, que questionam o seu papel, que não acreditam mais na vocação “inata” à maternidade, a qual implica não só dar à luz, mas amar os filhos acima delas mesmas, fazem parte do dia a dia das mães contemporâneas que, agora, parecem ter coragem de fazer em voz alta as mesmas perguntas e reflexões (antes feitas apenas intimamente) que a protagonista de Raiva se faz: “Como alguém se torna mãe?”, “Em que medida a alma se adequa ao papel?”, “A maternidade é um caminho que se trilha ou uma loucura que se herda?”.

Em Pequenas Resistências, a narradora afirma que os bebês estão mais para “um pingente pesado do que um ser vivo”. Em seguida, compara sua filha a uma droga: um dia, “ela é um opiáceo”, que a envolve em profundo bem-estar; noutro, ela é um composto de “neurotransmissores” que embaralham o pensamento, levando a mãe a reflexões terríveis que a fazem afirmar que os bebês são seres humanos inúteis ou “um nada”, que não podem sequer ser comparados a animais, já que, quando bebês, nem se locomover sozinhos podem.

Quando chama a filha de “puma”, deixa o leitor em dúvida, num primeiro momento, se ela se refere a um ser humano ou a um animal: “Quando a puma tinha em torno de quatro meses e estava saindo do estado felino e tinha se encaminhado para o estado de bicho-preguiça, já fazia frio com regularidade suficiente lá fora para ela poder andar por aí num macacão de neve de corpo inteiro.”

Pequenas Resistências é uma espécie de caderno de anotações, no qual a narradora elenca uma série de artistas que não tiveram filhos ao lado de outras que se tornaram mães, como, por exemplo, Shirley Jackson, “mais lembrada por seu conto sobre um grupo civil de pessoas que apedrejam até a morte seus concidadãos”, como ressalta, ironicamente, a narradora do livro. Parece, lendo essa passagem do romance, que as mães escondem uma raiva que deve ser extravasada de alguma forma.

A mãe de Precoce engrossa a lista das mães imperfeitas. Logo no início da narrativa, a protagonista conclui: “o filho não me alegra, o filho não sacia”. Contudo, é em torno desse filho que sua vida orbita. A relação entre ambos não é exatamente uma relação entre mãe e filho, tal como a conhecemos; ao contrário, ambos parecem ser apenas “dois clandestinos que se cruzam numa parada, dois aturdidos no alto de um refúgio, dois punks que atravessam a Europa comendo do lixo público”. Ao mesmo tempo, é essa mesma mãe que se orgulha de ter pensado no almoço do filho.

Essas três mães ficcionais e imperfeitas podem talvez revelar o que as mães reais muitas vezes tentam esconder de si mesmas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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