Léo, de 12 anos, acorda cedo e muito animado nos dias de treino com o time de futebol que ajudou a fundar recentemente nas dependências da Nossa Arena, complexo esportivo localizado na Barra Funda, em São Paulo. Cerca de um ano atrás, contudo, pensar em praticar um esporte coletivo era uma ideia bastante desconfortável para ele.

Biologicamente nascido com características físicas femininas, Léo é um menino trans e passou por um longo processo até estar pronto para existir como um garoto, mas a sensibilidade da mãe Lis Hachiya e o esporte o ajudaram nessa jornada. A percepção de que talvez fosse mãe de uma criança transgênero veio cedo para Lis, quando o filho, que até então atendia por filha, tinha por volta de seis anos.

Cabelo curto era a preferência na hora de escolher o visual e roupas femininas eram rechaçadas. Fã do Homem-Aranha, pedia camisetas deste e outros personagens. A mãe dava, e a cada nova peça comprada, sugeria que uma roupa fosse doada. Sobrava para os vestidos. “Levei ele para a terapia e comecei a fazer também. Ele foi se construindo sozinho”, conta Lis, que tem 51 anos e abandonou a carreira de enfermagem para se tornar sommèliere, ao Estadão.

Enquanto ainda começava a se entender como pessoa trans, Léo foi introduzido ao patins, esporte praticado pela mãe. Também se entusiasmou quando descobriu o skate, entre os 10 e 11 anos, apoiado por Lis, que aprendeu a andar para acompanhá-lo nas pistas. Já a prática de modalidades coletivas era uma barreira.

“Ele nunca aceitou fazer outro esporte que tivesse mais pessoas, foi sempre solitário. Por ele, moraria no quarto, com os amigos virtuais e joguinhos online. Aliás, sempre escolhia personagens masculinos nos joguinhos. Isso desde pequeno, quando jogava Minecraft, já se apresentava como menino”, afirma a sommèliere.

Léo chegou a fazer um plano para tirar a própria vida, descoberto pela mãe. Um dia, virou-se para ela e disse que não aguentava mais fingir ser o que não era. “Ele disse que estava cansado de se esforçar para tentar ser uma menina, que se sentia um menino, mas que não via como fazer isso e não estava pronto, e as pessoas não iam aceitar. Aí, a gente começou todo um processo de preparar ele para existir como Léo”, lembra Lis.

Este processo durou cerca de um ano, com auxílio de uma psicóloga especializada em gênero e do coletivo Mães da Resistência. Em seu aniversário de 12 anos, o menino se sentiu pronto e cortou o cabelo em ato de autoaceitação. Agora, recebe o acompanhamento do Hospital das Clínicas da USP e está em transição de gênero, que nesta idade é mais focada no âmbito social, começando pela mudança de roupas e nome.

Também existe a possibilidade de bloqueio puberal, mas Léo estava com a puberdade avançada para fazer o procedimento. Já a injeção de hormônios só pode ser feita a partir dos 16 anos e a cirurgia de redesignação de gênero, a partir dos 18, conforme determina a lei brasileira.

INCLUSÃO POR MEIO DO ESPORTE

Depois que o filho iniciou a transição, Lis se viu cada vez mais engajada na causa das pessoas trans. Então, em uma passeata em janeiro deste ano, conheceu integrantes do Sport Clube T Mosqueteiros, time amador de futebol e futsal formado por homens trans.

Tal encontro abriu um novo mundo para Léo, que começou a frequentar os treinos da equipe na Nossa Arena, um espaço inicialmente criado exclusivamente para práticas esportivas de meninas e mulheres, mas que abriu as portas para os T Mosqueteiros.

Júlia Vergueiro, sócia-fundadora da arena, entendeu que o propósito de inclusão, segurança e acolhimento oferecido às mulheres no local era também uma demanda daquele grupo de homens trans. O caminho foi construído após a Nossa Arena sediar, em 2022, uma edição da Taça da Diversidade, que reúne times constituídos por pessoas LGBTQIA+.

“A gente até avaliou se fazia sentido, porque era um campeonato que teria times de homens gays e até então a gente não tinha aberto a nossa quadra para nenhuma equipe masculina. Mas trouxe algo muito similar ao que a gente falava, essa dor de não encontrar um ambiente seguro. A gente entendeu que precisava acolher”, explica a empresária.

Depois do evento, Bernardo Gonzalez, organizador do T Mosqueteiros, entrou em contato com o espaço para propor uma parceria, por meio da qual o time poderia utilizar as dependências duas vezes por semana, sem custos. “A gente entendeu que a realidade é bem difícil, a gente foi aprendendo sobre esse universo e o quanto essas pessoas são marginalizadas no mercado de trabalho. A gente precisava dar esse apoio. Então, até hoje a gente tem essa parceria e está sendo muito legal aprender e acolher”, lembra Vergueiro.

A Nossa Arena entrou de cabeça na experiência e até inaugurou um banheiro não-binário, destinado a pessoas de qualquer grupo de gênero. O recinto é um dos motivos que deixaram Leo mais à vontade no complexo esportivo.

“O Léo tem uma dificuldade muito grande de usar banheiro, tanto feminino quanto masculino. Lá tem esse espaço e ele se sentiu muito confortável. Começamos a frequentar,uma das coisas que ele gosta de fazer Nossa Arena é entrar no banheiro”, conta Lis.

O menino se sentiu tão acolhido que, junto à mãe e aos integrantes do T Mosqueteiros, deu o pontapé inicial para a criação de um time de base para crianças e adolescentes trans. Hoje, além de Leo, mais 11 jovens transgêneros treinam na arena da Barra Funda.

“O ponto mais positivo que essa vivência mais profunda com o esporte trouxe para a vida do Léo é o hormônio da felicidade. O esporte causa isso nas pessoas, a socialização com pessoas”, afirma a mãe. “Eu digo de boca cheia: a vida do Leo se resume em antes e depois do Nossa Arena. Tem um papel fundamental na vida do meu filho, que esteve por um fio em 2023”.

O nascimento da equipe não foi o único fruto do trajeto percorrido por Léo, que criou uma página de Instagram, a “TransGente”, iniciada como um canal de divulgação de informações sobre a vivência de pessoas trans. Atualmente administrado por Lis, o perfil ganhou proporções maiores e está se transformando em um coletivo.

O “TransGente” começou a receber mensagens de crianças e adolescentes transgêneros que não são aceitas pelas famílias e acabam expulsas do lar. Ao perceber isso, Lis passou a fazer uma ponte para levar essas pessoas para casas de acolhimento, caso de um menino trans de 19 anos chamado Noah, expulso de sua família no Rio e que vivia no Tocantins antes de ser trazido para São Paulo, onde mora no Centro de Acolhida para Homens João Nery.

“Não consigo entender isso das outras mães, como não aceitar. Eu tenho três filhos e os aceitei a partir do momento que eu me descobri grávida deles, sem saber sexo, sem saber gênero, sem saber nada. Eu já amava ali, então não tem como ‘desamar'”, afirma Lis.

ESPAÇO ACOLHEDOR

O espaço criado na Nossa Arena pelos T Mosqueteiros tem impacto tão grande nos adultos trans quanto no ainda embrionário grupo de crianças. O time dos adultos tem 30 atletas – a maioria pessoas transmasculinas, mas também há mulheres trans e travestis -, além de um grupo de acesso com mais 100 pessoas que demonstram interesse em participar, porém sem regularidade.

Também existem pessoas trans que frequentam a arena e jogam com mulheres cis. É o caso de Ma Zink, mais conhecido apenas como Zink, dublador de 34 anos com trabalhos em Dragon Ball Super, Alice in Borderland e Heartstopper.

Diferentemente de Léo, que vive a infância e a pré-adolescência em um mundo no qual o tema começa a ser mais debatido, Zink iniciou a transição na vida adulta. Há, contudo, semelhança à história do menino de 12 anos, pois também recebeu apoio da mãe e teve no esporte um aliado em sua jornada.

Professora aposentada e artesã de 65 anos, Ana Maria Lutti Zink deu suporte ao filho quando ele ainda se entendia como uma mulher e revelou que se relacionava com outras mulheres, aos 20 e poucos anos. A descoberta como homem trans veio gradualmente, em meio a momentos de depressão intensa e de pequenos passos dados em direção à transição.

“Eu vejo que talvez ele tenha sido uma criança trans, mas na época eu não tinha esse entendimento”, conta a mãe. “Depois de adulta, tinha cabelo comprido, de franja. Quando resolveu cortar totalmente, me chamou e eu fui com ele em São Paulo, em uma barbearia. Foi um amigo junto, fotografando. Ali que acho que começou a transição. Eu sempre perguntava, ‘filha, você acha que você é uma pessoa trans?’ Ele dizia: ‘acho que sou não-binário'”.

O esporte sempre fez parte da vida de Zink, especialmente o futebol, praticado desde criança, mesmo com algumas piadas que ouvia nos tempos de escola. “Ele sofria bullying, era a menina que ninguém queria, era ‘o moleque’, sempre teve isso, uma provocação na escola”, conta Ana Maria.

Zink não se afastou do esporte e isso o levou, já adulto, à Nossa Arena, onde se viu dentro de um movimento de acolhimento que lhe trouxe bastante força. Mesmo com a transição, iniciada há pouco tempo, ele continua jogando com um grupo de mulheres. Junto delas e demais pessoas importantes de sua vida, usou o espaço destinado a eventos do complexo esportivo para fazer sua festa de noivado.

“Eu vi como o esporte é inclusivo, traz amizades. Acho que isso deu muita força para o Ma fazer a transição”, comenta a mãe. “O esporte sendo inclusivo – pelo menos como é na Arena, pois sei que há lugares onde não é -, vai mudando a sociedade. Tem que começar de algum lugar. Se o esporte fizer esse papel, já vai mudar um pouco.”

As histórias de Léo e Zink reforçam em Júlia Vergueiro a confiança de estar construindo um espaço que leva o esporte para além da atividade física e se compromete com questões importantes da sociedade.

“Que pais e mães que não convivem com crianças trans, que não conhecem histórias, tenham abertura para entender antes de fazer um julgamento. É muito comum a gente se embasar no que a gente mais vê. E o que a gente mais vê, quando se fala de pessoas trans no esporte, é dentro do universo competitivo. É uma discussão muito baseada em performance, não no lado social, na importância dessa inclusão”, afirma.