Se Emmanuel Macron teve dificuldades para se reeleger presidente da França, a reforma previdenciária esfarelou de vez sua base no Parlamento. Com a proposta da primeira-ministra Élisabeth Borne enfiada goela abaixo da Assembleia Nacional (pelo artigo 49.3, que dispensa aprovação legislativa), os parlamentares apresentaram duas moções de censura na terça-feira, 21, que poderiam ter derrubado o governo. Por ser impedido constitucionalmente de concorrer a um terceiro mandato em 2027, Macron pode ter calculado que valia a pena ir para o tudo ou nada arriscando o seu capital político. Com votos que se estenderam da extrema-esquerda à extrema-direita e, pior, passando por vários dissidentes do centro, onde o presidente se coloca politicamente, o gabinete lançado na fogueira se salvou por apenas nove votos, de um total de 577. A aposta foi bem alta e por pouco a cabeça da primeira-ministra não rolou.

De toda forma, as ruas seguem com manifestações violentas e uma crise sanitária crescente, com montanhas de sacos de lixo fedendo com a greve dos lixeiros — talvez a mais sentida pelos franceses, em meio à paralisação de refinarias, ferrovias, portos, aeroportos e escolas, além do bloqueio de estradas e prédios públicos. Macron pode enfrentar meses de protestos como na onda dos “coletes amarelos”, entre outubro de 2018 e março de 2019. Após a última crise, ele só deteve a ascensão da extremista de direita Marine Le Pen na eleição de abril de abril de 2022 com a confiança adquirida durante a gestão da pandemia.

Agora, a grande vencedora desse embate é ela. Le Pen votou pela derrubada da primeira-ministra, ironizou que “é difícil governar nessas circunstâncias” e ainda comentou, sugestivamente, que o governo “está criando todas as condições para uma explosão social”. Disse já ter avisado Borne que “não seria possível apagar o fogo se o governo impusesse a reforma previdenciária por decreto” e nem contassem com ela “para servir de bombeiro como fiz com os coletes amarelos”. Saiu por cima.

POR UM FIO Élisabeth Borne sobreviveu às moções de censura da Assembleia Nacional (Crédito: Bertrand GUAY / AFP)

O nervo exposto na reforma apresentada é a aposentadoria mínima que passa de 62 para 64 anos. Mesmo com inflação mais baixa (6,3% em fevereiro) que outros grandes da Europa, como Alemanha e Reino Unido, a França estava atrasada em relação a países que concedem aposentadorias mais tarde, entre 65 e 67 anos, afirma Ana Carolina Marson, doutora em Relações Internacionais e professora da Universidade São Judas Tadeu. “A França soma hoje mais aposentados do que população economicamente ativa”, observa. E, com a dívida pública perto de 120% do PIB (quase o dobro da Alemanha), a outra saída seria o aumento de impostos, o que o governo preferiu evitar.

A insistência de Macron teve um custo alto. Antes da passagem da reforma, no domingo, 19, o Ifop (Instituto de Estudos de Opinião e Marketing) já havia detectado o pior índice de aprovação do presidente em quatro anos: 28%, contra 70% de “insatisfeitos”. Ele escapou de ver sua premiê deposta, mas não de ser chamado de “traidor” até por coligados de seu partido centrista, o Renaissance. Ainda assim, foi abrir a boca para dizer que “a multidão” que se manifesta “não tem legitimidade diante do povo que se expressa por seus eleitos”. E reafirmou que não promoverá remodelação no gabinete nem entregará Élisabeth Borne como moeda de troca, o que foi sugerido por alguns parlamentares, para quem o governo dela “está morto”.

REVOLTA Manifestações paralisam serviços pela França, em repúdio a cortes de benefícios, como aposentadoria aos 62 anos (Crédito:AP Photo/Lewis Joly)

Para Ana Carolina, a perda política de Macron se deu ainda mais pela maneira que a reforma previdenciária foi imposta, quase uma afronta aos franceses e seu apreço pela democracia: à revelia da Assembleia Nacional, que tem a última palavra quanto a propostas legislativas. “Ele já havia perdido muito do apoio nas eleições intermediárias e agora joga a França nos braços da extrema-direita. Quem paga o ônus é ele mesmo. Fortalece a oposição e enfraquece o governo, em meio a uma situação turbulenta que deve piorar, porque o povo francês se organiza muito bem para defender pautas em que acredita”, observa a professora. “Mas o orçamento tem de sair de algum lugar. Se a aposentadoria aos 64 foi empurrada, era necessária. Não fosse ele, outro teria de fazer essa reforma. Macron pegou o pior momento.”