24/03/2023 - 9:30
Se Emmanuel Macron teve dificuldades para se reeleger presidente da França, a reforma previdenciária esfarelou de vez sua base no Parlamento. Com a proposta da primeira-ministra Élisabeth Borne enfiada goela abaixo da Assembleia Nacional (pelo artigo 49.3, que dispensa aprovação legislativa), os parlamentares apresentaram duas moções de censura na terça-feira, 21, que poderiam ter derrubado o governo. Por ser impedido constitucionalmente de concorrer a um terceiro mandato em 2027, Macron pode ter calculado que valia a pena ir para o tudo ou nada arriscando o seu capital político. Com votos que se estenderam da extrema-esquerda à extrema-direita e, pior, passando por vários dissidentes do centro, onde o presidente se coloca politicamente, o gabinete lançado na fogueira se salvou por apenas nove votos, de um total de 577. A aposta foi bem alta e por pouco a cabeça da primeira-ministra não rolou.
De toda forma, as ruas seguem com manifestações violentas e uma crise sanitária crescente, com montanhas de sacos de lixo fedendo com a greve dos lixeiros — talvez a mais sentida pelos franceses, em meio à paralisação de refinarias, ferrovias, portos, aeroportos e escolas, além do bloqueio de estradas e prédios públicos. Macron pode enfrentar meses de protestos como na onda dos “coletes amarelos”, entre outubro de 2018 e março de 2019. Após a última crise, ele só deteve a ascensão da extremista de direita Marine Le Pen na eleição de abril de abril de 2022 com a confiança adquirida durante a gestão da pandemia.
Agora, a grande vencedora desse embate é ela. Le Pen votou pela derrubada da primeira-ministra, ironizou que “é difícil governar nessas circunstâncias” e ainda comentou, sugestivamente, que o governo “está criando todas as condições para uma explosão social”. Disse já ter avisado Borne que “não seria possível apagar o fogo se o governo impusesse a reforma previdenciária por decreto” e nem contassem com ela “para servir de bombeiro como fiz com os coletes amarelos”. Saiu por cima.
O nervo exposto na reforma apresentada é a aposentadoria mínima que passa de 62 para 64 anos. Mesmo com inflação mais baixa (6,3% em fevereiro) que outros grandes da Europa, como Alemanha e Reino Unido, a França estava atrasada em relação a países que concedem aposentadorias mais tarde, entre 65 e 67 anos, afirma Ana Carolina Marson, doutora em Relações Internacionais e professora da Universidade São Judas Tadeu. “A França soma hoje mais aposentados do que população economicamente ativa”, observa. E, com a dívida pública perto de 120% do PIB (quase o dobro da Alemanha), a outra saída seria o aumento de impostos, o que o governo preferiu evitar.
A insistência de Macron teve um custo alto. Antes da passagem da reforma, no domingo, 19, o Ifop (Instituto de Estudos de Opinião e Marketing) já havia detectado o pior índice de aprovação do presidente em quatro anos: 28%, contra 70% de “insatisfeitos”. Ele escapou de ver sua premiê deposta, mas não de ser chamado de “traidor” até por coligados de seu partido centrista, o Renaissance. Ainda assim, foi abrir a boca para dizer que “a multidão” que se manifesta “não tem legitimidade diante do povo que se expressa por seus eleitos”. E reafirmou que não promoverá remodelação no gabinete nem entregará Élisabeth Borne como moeda de troca, o que foi sugerido por alguns parlamentares, para quem o governo dela “está morto”.
Para Ana Carolina, a perda política de Macron se deu ainda mais pela maneira que a reforma previdenciária foi imposta, quase uma afronta aos franceses e seu apreço pela democracia: à revelia da Assembleia Nacional, que tem a última palavra quanto a propostas legislativas. “Ele já havia perdido muito do apoio nas eleições intermediárias e agora joga a França nos braços da extrema-direita. Quem paga o ônus é ele mesmo. Fortalece a oposição e enfraquece o governo, em meio a uma situação turbulenta que deve piorar, porque o povo francês se organiza muito bem para defender pautas em que acredita”, observa a professora. “Mas o orçamento tem de sair de algum lugar. Se a aposentadoria aos 64 foi empurrada, era necessária. Não fosse ele, outro teria de fazer essa reforma. Macron pegou o pior momento.”