BRASILEIROS DO ANO
Marília Mendonça – Música

O Desespero da Piedade é um dos poemas mais bem construídos por Vinicius de Moraes, entre a infinidade de poesias perfeitas que ele nos legou perscrutando os mistérios da alma humana nas relações amorosas, os impasses do desejo, a pouca alegria e a muita tristeza dada à inevitável efemeridade dos encontros. Em Desespero da Piedade, Vinicius sentencia sem medo da generalização: “o homem não presta, não presta, meu Deus!”. Trata-se da demolição do homem machista, e igual desconstrução sociológica e psicológica desse homem tão cotidiano, tão comum, tão mágico na chegada e tão nada na partida é encontrada no trabalho artístico que levou ao auge do sucesso a cantora Marília Mendonça, homenageada, postumamente, pela Editora Três, na categoria “Brasileira do Ano na Música”. Ela deixou-nos precocemente, mas senhora de uma eternidade de conhecimento sobre a emoção das mulheres que acabam amando mais do que podem amar, justamente porque amam o “homem que não presta”. A prova disso é a sua própria tia, que foi traída e inspirou-lhe a composição Infiel. Nela está a marca da genialidade. Marília colocou o “homem que não presta” no cancioneiro sertanejo e revolucionou não apenas esse gênero como criou, ao mesmo tempo, uma nova sensibilidade de mulher na música popular.

Há quem faça pendular na mente, no espanto das insônias, a imagem de uma mulher que, diante das desesperadas súplicas de um homem ajoelhado a seus pés, fique olhando para as palmas das mãos, dedos voltados para elas, e lamente baixinho consigo mesma: “acho que lasquei minha unha”. Essa mulher é desprovida de empatia? Não. Ela apenas castiga com a indiferença do desdém o “homem que não presta”. A mulher da obra de Marília também castiga, mas com objetividade. Vale o cotejamento, ainda, com a mulher abandonada que a talentosa Maysa Matarazzo cantava. Sua personagem é outra, é a figura feminina submissa que sofre: “meu mundo caiu, quem me fez ficar assim, você conseguiu, e agora diz que tem pena de mim (…)”. Em Marília — dois M maiúsculos de mulher, um no prenome, outro no sobrenome —, o ser feminino não é indiferente nem é submisso, não existe nele a ironia fria da unha lascada nem a resignação: “se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar”. O ser feminino é sacudido, torna-se protagonista de sua dor nos relacionamentos fracassados, e, mais que isso, ganha a coragem de dizer que homem traidor é “homem que não presta”. Descalça nos palcos (à moda da cantora De Kalafe com suas músicas de protesto nos anos 1960), Marília abre a garganta: “pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando (…) iê infiel, eu quero ver você morar num motel, estou te expulsando do meu coração, assuma as consequências dessa traição”. As músicas de Marília Mendonça — assim como todos os amores eternos ou todas as traições — passarão com o tempo. Mas a revolução e a criação de uma nova sensibilidade poética e musical, essas ficarão para sempre. Foi inaugurado um novo gênero artístico na música. E o mérito é de M. M.

Leonina do primeiro dia do zodíaco

Marília Mendonça subiu para a eternidade das grandes estrelas da música brasileira graças ao seu talento. Falar somente talento parece pouco, mas, na verdade, não é. Talento é destino. Ao ouvir o conjunto da obra de Marília Mendonça bate o sentimento de que ela, desde recém-nascida na pequena cidade goiana de Cristianópolis, em 22 de julho de 1995 – dia que abre o signo leonino no zodíaco —, veio ao mundo para fazer mesmo uma revolução artística e logo descansar — e descansou precocemente aos 26 anos, a 5 de novembro de 2021, vítima de um acidente de avião em Minhas Gerais. Falou-se em talento, vamos traduzi-lo. A sua composição “Infiel” foi a mais ouvida em 2016. Um ano depois, todas as músicas, por ela compostas ou só interpretadas, eram as mais executadas. Em 2019 e 2020, Marília consagrou-se como a campeã das mais diversas plataformas de streaming. Ainda em 2020, é dela o clipe mais assistido: “Bem pior que eu”, com 527 milhões de visualizações. Os seus vídeos, reunidos, alcançaram a marca de 14 bilhões de streams. Como se disse, talento não é pouca coisa não.