“Se eu avançar, siga-me. Se eu recuar, mate-me. Se eu morrer, vingue-me.” Roubada de um general do século 18, a frase proferida por Benito Mussolini na reunião do governo italiano, em 7 de abril de 1926, seria o resumo perfeito de projeto autoritário e personalista de poder do ditador. Horas antes, o autodenominado “Duce do Fascismo e Fundador do Império” havia escapado de um dos muitos atentados que sofreria ao longo da vida – fato que lhe renderia, na visão dos seus seguidores, a fama de operador de milagres.

LANÇAMENTO M, o Homem da Providência
Antonio Scurati Ed. Intrínseca 606 págs. | Preço: R$ 81

Escrita por Antonio Scurati, a trilogia sobre a vida de Mussolini é um dos maiores fenômenos literários italianos dos últimos tempos. Lançado em 2018, o primeiro volume, M, o Filho do Século, vendeu quase um milhão de cópias e foi traduzido em 40 países. Chega agora às livrarias a segunda parte da obra, M, o Homem da Providência. O livro inicial cobre o período de 1919 a 1925: o jovem humilde, filho de um ferreiro com uma professora, voltara da Primeira Guerra Mundial decidido a abandonar o socialismo, regime que defendia até então. Sensível aos movimentos populares, fundou o primeiro partido fascista, o “Fasci di Combattimento”. Em 1924, após chegar ao poder, incitou o assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti. O crime foi cometido pela milícia pessoal de Mussolini, os “camisas negras” – ele havia revelado a farsa na eleição. Com a morte do rival, o “Duce” estava livre para instaurar uma ditadura de partido único, com anuência do fraco rei Vítor Emanuel III.

M, o Homem da Providência, o segundo volume da trilogia, começa em 1925 quando Mussolini já é primeiro-ministro. A obra inicia com sua luta pela vida – não por conta de algum inimigo, mas graças a uma hemorragia gástrica que quase o levou à morte. Vencida a doença, vem a fase de consolidação do regime, quando Mussolini trocou as disputas com adversários políticos – os que ainda existiam eram encarcerados ou mortos – pelas “batalhas econômicas”. Dedicou-se a administrar os problemas do país por meio de campanhas de mobilização popular, como a “Batalha do Trigo”, que visava ao aumento da produção agrícola, ou a “Batalha pela Terra”, que limpou os pântanos para reduzir a disseminação da malária. No auge do poder, enfrentou o isolamento e a paranoia tão comum aos autocratas. Confiava em poucas pessoas, entre elas a mulher, Rachele, e a amante, Margheritta Sarfatti. O livro termina com a inauguração da “Terceira Roma”, no décimo aniversário da revolução fascista, quando Mussolini adota o conceito criado por Giuseppe Mazzini: “Depois da Roma dos imperadores e da Roma dos papas, virá a Roma do povo”.

Por seu impacto global, Adolph Hitler vem à mente quando pensamos em um ditador do século 20. É Mussolini, porém, quem representa melhor o arquétipo do líder autoritário anti-democrático, o tirano arrogante que esmaga a oposição, defende a violência como ferramenta política legítima e abraça o povo como a mais paterna das figuras. Cinco anos mais velho que Hitler, sua trajetória foi um exemplo para o líder nazista. Os ditadores, que se uniriam mais tarde contra os Aliados, na Segunda Guerra, também morreriam juntos: Mussolini, aos 61 anos, foi fuzilado em 28 de abril de 1945. Hitler se matou aos 56 anos, dois dias depois.

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Obra é fenômeno literário na Itália

É tamanha a semelhança com o cenário político atual, que leitores desavisados poderiam acreditar que a obra de Antonio Scurati sobre Benito Mussolini se passa nos dias de hoje. A ascensão do autoritarismo descrito pelo autor napolitano remete aos movimentos da nova extrema direita, e nos lembra dos riscos que surgem da conjunção de crise econômica, com exacerbação do nacionalismo e líderes políticos carismáticos e populistas. Ironicamente, o tema, apaixonante, contrasta com o estilo literário de Scurati: objetivo, seco, contido, quase um relatório de fatos em sequência cronológica. Suas biografias romanceadas do líder italiano, no entanto, são extremamente fidedignas à realidade, frutos do rigor histórico e de elaborada pesquisa. Trazem ainda telegramas, notícias de jornais e trechos de cartas, além de um aposto com mini-biografias dos personagens citados. Um belo material de apoio que valoriza ainda mais a obra de Scurati, autor agraciado com o prêmio Strega, o mais renomado da Itália, e professor de literatura da Universidade de Comunicação e Línguas de Milão.