SEVILHA Marroquinos: aliados de espanhóis que lutaram contra a ditadura de Francisco Franco (Crédito:Documenta)

Há um movimento acontecendo na Espanha. Locais que serviram entre 1936 e 1939 como cemitérios clandestinos de vítimas da Guerra Civil, que opôs seguidores do generalíssimo Francisco Franco a republicanos que não queriam que ele se fixasse no poder, estão sendo finalmente descobertos. Isso vem ocorrendo em diversos pontos do país, alguns próximos a Madri, outros distantes. Nos últimos dias, as atenções se voltaram para a cidade de Almagro. Nela, começaram as exumações de ossadas na região conhecida como “Corral de los desgraciados”. Trata-se do primeiro cemitério desse tipo a trazer oficialmente à luz os horrores do conflito. Ao longo de décadas, investigações foram feitas, e, agora, tendo o socialista Pedro Sánchez como primeiro-ministro, o governo espanhol aprovou o investimento de vinte e oito mil euros em novas pesquisas, equipamentos e, também, na contratação de antropólogos e peritos para identificação de restos mortais por meio de exames genéticos de DNA. “Quando começamos a investigar, nós sabíamos da existência de duas mil vítimas somente nas proximidades de Almagro”, diz o professor de Antropologia Social da Universidade Nacional da Educação a Distância, Julián López. “Depois de consultar o Arquivo Histórico de Defesa, os registros civis e os expedientes penitenciários, concluímos que esse número é quase duas vezes maior”.

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Para os familiares das vítimas da guerra, mesmo que os laços de parentesco já estejam longínquos demais, é importante que a Espanha ingresse nesse novo período, no qual passará a limpo a sua história e dará sepultura digna a cerca de quinhentos mil mortos. Estima-se que esse seja o número de vítimas fatais ao longo dos três anos de conflagração civil, em que tombaram sobretudo republicanos que se opuseram aos falangistas e à consolidação do poder de Franco — os republicanos, se fortes em seus ideais, eram o lado mais frágil em armamentos e número de soldados, tendo de contar com voluntários ligados principalmente aos partidos anarquistas e comunistas de diversos países, inclusive do Brasil. Assim, o “Corral de los desgraciados” é a ponta de um iceberg que a Espanha está disposta a assumir e expor.

Para esconder da família que ele seria fuzilado, Racionero escreveu: “Mãe, eu estou bem, nem precisa me enviar tanto leite”

 

ALMAGRO Início da exumação no “Corral de los desgraciados”: reparação histórica (Crédito:Divulgação)

Cartas escritas, na época, pelos próprios prisioneiros em Almagro, que viviam o desespero de saberem que seriam fuzilados, eram retiradas, de forma camuflada, por parentes que iam visitá-los. E, para o bem da história que visa a denunciar atrocidades de ditaduras na esperança da construção de democracias, tais cartas foram passando de geração à geração. María José Bautista é exemplo vivo desses episódios. Ela sempre escutou a avó Josefa falar, com amor e saudade, do irmão Santos Racionero, que esteve preso, foi fuzilado aos 24 anos e enterrado no “Corral de los desgraciados”. Mesmo quando a morte se avizinhava, Racionero procurava escondê-la da família: “Mãe, eu estou bem, nem precisa me enviar mais tanto leite”, escreveu ele em um dos bilhetes. Os anos foram passando, a família crescendo, mas os escritos dos Racionero nunca se perderam — até chegar às mãos da neta, Maria José Bautista. É ela quem irá acompanhar a exumação de Racionero: “Essa é a história da minha família e, mesmo nos dias atuais, não será interrompida. Eu a contarei aos meus filhos”.

Se o caminhar do tempo chega hoje a Almagro é porque os parentes de republicanos mortos não se cansaram de exigir na Justiça a localização de cemitérios clandestinos — da mesma maneira que, concomitantemente, pleiteavam que os restos mortais de Franco fossem retirados do “Vale dos Caídos”. Com razão: esse é o local onde existe o maior número de republicanos enterrados. Assim, era considerado um desrespeito à memória deles estar, também lá, a ossada do principal e maior dos algozes. Após batalha judicial que se estendeu por anos, o corpo de Franco foi finalmente removido, em 2019. E, agora, de acordo com um cronograma já organizado, também os combatentes republicanos que estão enterrados no “Vale dos Caídos” serão exumados.