“Se a Burberry decidiu divulgar esse procedimento para chamar atenção,o tiro saiu pela culatra” Amnon Armoni, especialista em luxo (Crédito:Divulgação)

A prática parece estúpida, mas é corriqueira no mercado de alto luxo. Itens que não encontram compradores acabam no lixo, são destruídos ou incinerados. É, literalmente, uma queima total — e não no sentido em que o termo aparece nas liquidações. Para a indústria que fabrica joias, relógios, perfumes e roupas exclusivas, reduzir preços é heresia. Na semana passada, a grife britânica Burberry, ícone do luxo cuja fundação remonta a 1856, anunciou ter queimado, em apenas um ano, o equivalente em produtos a 28 milhões de libras, cerca de R$ 141 milhões. Os dados constam do relatório anual da Burberry, relativo a 2017. Não foi a primeira vez. Nos últimos cinco anos, a marca incinerou aproximadamente 90 milhões de libras esterlinas, algo próximo de R$ 446 milhões. Os produtos, segundo a grife, haviam sido produzidos em quantidades muito acima do que o mercado era capaz de absorver. Ou seja, encalharam.

“Uma das características da marca de luxo é a exclusividade. O conceito de escassez planejada da oferta explica essa necessidade que marcas como a Burberry têm de manter o preço”, diz Amnon Armoni, especialista em luxo e professor do MBA em Gestão Estratégica de Negócios da FAAP, em São Paulo. Para ele, marcas que atuam nesse segmento não podem correr o risco de perder relevância — o que ocorreria no caso de desequilíbrio da oferta em relação à demanda.

Embora tenha um alto custo tanto financeiro quanto ambiental, a destruição do excedente não gera prejuízo. Pelo contrário. Segundo Armoni, os acionistas são extremamente sensíveis aos resultados e ao valor da marca. “É preciso garantir o lucro, crescer, obter dividendos”, afirma. Ainda assim, ele acredita que tornar pública a informação sobre a destruição de mercadorias pode ser prejudicial para a imagem da grife. “Foi bizarro”, diz Armoni. “Se a Burberry decidiu divulgar esse procedimento para chamar atenção, o tiro saiu pela culatra. Como será a percepção dos consumidores daqui em diante?”, questiona. Em pronunciamento à imprensa, representantes da Burberry afirmaram que a incineração não deteriora o meio ambiente: “A energia gerada a partir dessa queima é armazenada, então o processo não polui”.

Para o professor do Instituto de Energia e Meio Ambiente da USP, Pedro Roberto Jacobi, a incineração é uma ação cada vez mais combatida, e o fato de a prática ser recorrente por parte das grifes “representa uma aberração do ponto de vista ambiental, mas principalmente social. É uma atitude escandalosa e a melhor maneira de combater esse absurdo é boicotar seus produtos”, afirma Jacobi.

“ABSURDO”

Uma alternativa bem mais sustentável seria doar os produtos excedentes para instituições filantrópicas, que poderiam leiloá-los e destinar os recursos obtidos para causas sociais e humanitárias. Patrocinar programas de combate à pobreza extrema, à fome e à destruição ambiental seria bem mais interessante que destruir objetos que empregaram não apenas recursos naturais valiosos como o trabalho de centenas de pessoas. Em um mundo marcado pela crescente concentração de renda e onde cada vez mais se questiona a ostentação e o desperdício, destruir parte dos estoques para garantir mais lucros é um convite a críticas. “Um absurdo”, afirma Katherine Braun, professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e especialista em moda. Ela relembra que o grupo Richemont, proprietário das marcas Montblanc e Cartier, “redirecionou” cerca de 500 milhões de euros (R$ 2,1 bilhões) em estoque excedente nos últimos dois anos. Nesse caso, parte dos itens foi reciclado, mas muito do material acabou destruído. Não é de estranhar que o bilionário sul-africano Johann Rupert, principal acionista do grupo Richemont, tenha declarado, anos atrás, que a desigualdade social o perturba a ponto de ele não dormir tranquilo. Suas práticas comerciais são mesmo capazes de tirar o sono de qualquer um.

IMAGEM ABALADA Queima de estoque põe em risco percepção da marca (Crédito:Bloomberg)