Pioneira na luta contra os assassinatos machistas, a Espanha viu como seu consenso se pulverizou em torno de medidas para combater a violência contra as mulheres, com a ascensão da extrema direita do partido Vox.

A violência doméstica se tornou um assunto de transcendência nacional a partir de um assassinato que comoveu a Espanha em 1997.

“Meu marido me maltratou durante 40 anos”, contou Ana Orantes na televisão, afirmando ter apresentado 15 denúncias contra ele sem receber proteção para ela ou seus filhos.

Quando obteve o divórcio, a justiça a obrigou a compartilhar sua casa em Granada (sul) com seu ex-marido. Treze dias depois de aparecer na TV, sua filha encontrou seu corpo queimado vivo por seu ex-companheiro.

Este feminicídio fez do combate à violência de gênero uma causa nacional, levando à aprovação – em 2004, sob o governo do socialista José Luis Rodríguez Zapatero – de uma lei para responder a suas dimensões sociais, judiciais e educativas.

Com a legislação, as “razões de gênero” se tornaram circunstâncias agravantes em uma agressão. Foram criados cerca de 100 tribunais e uma promotoria especializados. Um promotor pode investigar um agressor sem que exista denúncia da vítima.

A assistência jurídica é gratuita para as vítimas e os agressores são supervisionados com tornozeleiras eletrônicas. Em outubro, o Tribunal Supremo retirou o poder paternal a um pai que tentou assassinar sua esposa na frente dos filhos, uma decisão que deveria estabelecer jurisprudência.

– Consenso –

Aprovada por unanimidade no Parlamento, a lei de 2004 era respaldada por “mais de 80% da população espanhola”, aponta à AFP Marisa Soleto, diretora da ONG feminista Fundação Mulheres.

Os partidos atingiram em 2017 um “pacto de Estado” para respaldar esta luta com um bilhão de euros durante cinco anos.

Desde 2001, o jornal El País contabiliza os assassinatos machistas, que recebem grande atenção midiática.

O Estado contabiliza mais exaustivamente a violência de gênero desde 2003. Cada morte é denunciada no Twitter pelo presidente do governo, o socialista Pedro Sánchez.

Mas o consenso se dissipou com a ascensão do partido de extrema direita Vox, que se tornou a terceira força política do país nas legislativas de 10 de novembro.

O Vox pede a revogação da lei, considerando-a “ideológica” e “discriminatória” contra os homens, enquanto exige a “perseguição efetiva de denúncias falsas” de violência machista.

Pede, ainda, a “supressão de organismos feministas radicais subvencionados” e a exclusão do aborto da saúde pública.

Posturas que não se encontram “nem na ultra direita italiana, nem na França. Temos que ir até a Polônia para encontrar algo que se pareça um pouco com isso”, diz Marisa Soleto.

– “Comprar” o discurso –

Embora o Partido Popular (PP) defenda as medidas contra a violência de gênero, seu discurso se tornou “mais agressivo” ante a irrupção do Vox à sua direita, estima Ana Bernal, jornalista especialista em feminismo.

“Que se proteja as vítimas, independentemente do sexo e da idade”, disse em janeiro o presidente do PP, Pablo Casado. Em uma entrevista à revista feminina Telva em março, rejeitou “cair nisto que diz a esquerda de proteger mais as mulheres. O que fazemos? Vamos escoltá-las pelas ruas?”.

Na opinião da socióloga de gênero María Silvestre, “ocorreu o que uma cientista política americana, Pippa Norris, chama de ‘aquiescência’: quando um partido de extrema direita começa a encorajar um discurso e a direita democrática, para não perder votos ou para não confrontar, compra esse discurso”.

“O maior perigo do Vox é que a outra direita legitime seu discurso”, ressalta esta pesquisadora da Universidade Deusto em Bilbao.

“Todo este consenso político que houve, não o teríamos tido, não teríamos podido fazer metade das coisas que fizemos, se a ultra direita tivesse estado tão ativa como está agora na Espanha”, aponta Marisa Soleto.