De líder popular rebelde, defensor de minorias – pobres, pretos e excluídos – até à prisão e, logo a seguir, direto para o poder, reverenciado no mundo por suas causas, tido como um dos grandes nomes na luta contra a desigualdade, Nelson Rolihlahla Mandela desenhou uma trajetória que parece servir como luva, de referência, ao demiurgo de Garanhuns, Luiz Inácio Lula da Silva. Esse repete, entusiasmado, e citando a lembrança, passos muito próximos aos daquele que considera seu alter-ego, o sul-africano que tanto admira e de quem se tornou amigo. Da prisão ao poder, o agora eleito presidente do Brasil, Lula, que chega ao cargo pela terceira vez, exatos 20 anos após a sua primeira conquista em 2002, também é tratado como uma fênix que ressurge das cinzas. O sisudo matutino inglês Financial Times exaltou a vitória do brasileiro como um “triunfo contra a adversidade”. O francês Le Figaro tratou de avaliar o feito como “saga extraordinária”. O The Guardian historiou a “ascensão, queda e ascensão” do pai dos mais humildes e a mídia internacional em peso concedeu ares de redenção democrática ao levante de Lula nas urnas. Não há dúvida, o planeta respirou aliviado – e, literalmente, frente à ameaça ambiental que o opositor Bolsonaro prometia em uma escalada de desmatamento, invasões ilegais de garimpeiros e queimadas sem fim. Poucas vezes, ao que indicam as declarações sistemáticas de líderes das mais diversas partes e vertentes ideológicas, demonstrando apoio aberto a Lula nas redes sociais, uma eleição por aqui galvanizou tanto interesse e apreensão. O petista, que governa o Brasil a partir de 1 de janeiro próximo, é considerado superstar global, não apenas capaz de aglutinar maioria no País que irá comandar. Os tapetes de boas-vindas voltaram a ser estendidos. A COP-27 servirá de palco à avantpremière dos cumprimentos pelo retorno aos grandes salões. O Fórum de Davos já o recrutou como estrela do encontro. Convites e pedidos de audiência se sucedem, ante a perspectiva de se aproximar daquele visto, tido e havido como celebridade política mundial, ex-líder sindical nascido na pobreza que vivencia um roteiro digno de filme, quase épico, cheio de altos e baixos, deméritos e conquistas, o autêntico Macunaíma brasileiro, herói sem caráter, talhado pela marca da simpatia que virou sua arma para seduzir. Não há dúvida, no lombo do carisma que exibe e dadas as trilhas tortuosas, com pitadas kafkianas, o metalúrgico que construiu um partido, angariou massas de estudantes e trabalhadores, promoveu a socialização do Estado, caiu na tentação dos desvios, amplificou a projeção nacional no concerto das nações, resgatou a Educação como fator de desenvolvimento e tirou milhões da miséria, fez por merecer as deferências. No discurso da vitória, que pareceu mais um ordenamento de posse, tratou primeiro da conciliação. Com pseudos inimigos, eventuais detratores, cidadãos decepcionados e outros tantos desolados. Quer todos ao seu lado e promete um governo sem distinções – de classe, gênero, opção religiosa ou ideológica. Lula, ainda do trio elétrico na festa da sagração, no coração da Paulista domingo à noite, clamou pelo baixar das armas e ânimos, e fez um convite ao fim da polarização e do ódio incessante, promovidos até aqui de maneira sistemática pelo antecessor, que deixou feridas supuradas e chagas abertas. Reconstruir um País fraturado, destroçado e abatido, até pela perda de quase 700 mil vidas durante a pandemia da Covid, não é fácil. As turbulências geradas na linha divisória de pensamentos (e existencial inclusive) tendem a vingar por algum tempo ainda. Mas Lula se diz pronto para a tentativa de reencontro da serenidade e da estabilidade, que custará esforços insofismáveis. Expressa o desejo genuíno de alinhavar a paz. Quer se redimir pelos erros. Apela para um voto de confiança, uma nova chance. Ao concluir o próximo mandato, ele terá ficado 12 anos como titular absoluto no comando do País, período superado apenas pelo antológico Getúlio Vargas. Com 60,3 milhões de votos, um recorde jamais registrado, o Lula que sagrou-se campeão na eleição não é mais o mero representante expoente do PT. O movimento que dispendeu em direção a Geraldo Alckmin, seu vice, e a Simone Tebet fez surgir uma frente ampla de coalizão que irá exigir entendimentos, sob pena de ele não conseguir governar a contento, dado que a aliança não apenas lhe garantiu a vitória como também a base para negociar planos de gestão. Lula quer e terá de abrir espaços ao diálogo – não rumo à cooptação venal, como ocorreu com Bolsonaro. Acertos lastreados em projetos e bandeiras, colocando os interesses do povo acima de quaisquer outros. Não deixa de ser um sopro de esperança. Como apalavrou, as decisões que impactam a vida de 215 milhões de brasileiros não serão mais tomadas em sigilo de 100 anos, na calada da noite, mas, sim, via um amplo entendimento com a sociedade. Ele almeja assegurar ao mundo que o Brasil está de volta, na rota de reconquista da credibilidade, da previsibilidade e da estabilidade.

Algo que anima, sobremaneira, a investidores nacionais e internacionais. Lula procura resgatar o protagonismo. Na luta contra a crise climática, a fome, na defesa dos povos indígenas e a favor da biodiversidade. Pilares que fincou logo de saída. Na magnitude da tarefa a que se propõe, vai também por aqui, tal qual Mandela na África do Sul, que teve de enfrentar o apartheid racial, combater e buscar dar cabo à política segregacionista que separa nordestinos do sul maravilha em direitos e espaços — realidade a evidenciar o racismo atávico impregnado em nossa sociedade por séculos. No caso, avisa o demiurgo, será uma resistência pacífica, não nos moldes que caracterizaram o levante do Soweto. Em linhas gerais, o importante é que, com a posse de Lula, o Brasil retoma a via da redemocratização, numa gestão que provavelmente terá aspectos bons e ruins, porém sem as infâmias da era bolsonarista, na qual a ministra dos Direitos Humanos vaza dados falsos de bebês estuprados, o presidente diz que “pintou um clima” com crianças de 14 anos ou o titular da pasta do Meio Ambiente acha natural posar ao lado de madeireiros ilegais, com toras do desmatamento, defendendo a ação. O Brasil poderá, finalmente, buscando a paz de espírito, esquecer que um ministro da Saúde, general sem qualificações para ocupar o posto, foi capaz de negligenciar oxigênio a enfermos à beira da morte e recomendar remédios ineficazes no combate à doença, mesmo sabendo das orientações da OMS em contrário. Poderá colocar no esgoto da história personagens como o responsável pela secretaria de Igualdade Racial, que era um racista a perseguir negros e a relativizar a escravidão, e até alguns policiais federais, que apoiaram atos terroristas, não conformados com a derrota do capitão do Planalto. Deixará para trás o fato de que o próprio presidente teve a petulância, inominável, de montar um Estado de Emergência fake news para meter a mão no dinheiro público, de mandar para o espaço o teto de gastos, promovendo pedalagens imorais, e de criar um famigerado orçamento secreto para garantir a reeleição, que, afinal, não veio. As conspirações, covardia institucional e crimes de responsabilidade de toda sorte do mandatário, que termina seu longo interregno em dezembro próximo, deixaram o Brasil em carne viva. Lula apresenta-se como remédio no afã de dissolver tantas dores. Merece a chance de, ao menos, tentar.