Por CARLOS JOSÉ MARQUES

Observe a saga: a história de um presidente reeleito três vezes no Brasil – fato inédito –, que já foi preso em duas ocasiões, separadas pelo tempo entre o início e o apogeu da carreira, que trilhou uma trajetória fulgurante vindo migrante na boleia de um caminhão, criou um partido transformado em referência de oposição e consagrou a ideia do assistencialismo aos pobres como fórmula de sucesso de governo é, no mínimo, algo digno de estudo. Caberia em um filme (já tem) e em livros (também já escritos) e transportaria o personagem, irremediavelmente, à condição de referência histórica. O Lula que completou nesta semana 100 dias decorridos de seu terceiro mandato segue, mesmo assim, apesar de notoriamente conhecido pela maioria dos brasileiros – em atos, palavras e pensamentos –, sendo uma incógnita. No plano econômico, político, de gestão, ele ainda incita uma sucessão de dúvidas que deixa em polvorosa não apenas a banca financeira e a elite empresarial – sempre pronta a questionar pendores tidos de esquerda – como também os trabalhadores que enxergam nele o redentor e mesmo os aliados mais próximos. Ainda não se sabe se Lula, na terceira edição, é uma mera caricatura repaginada do “sapo barbudo” radical dos palanques em que comandava o sindicalismo, uma versão modernizada e vivenciada de experiente político com projeção internacional ou um simples e amargurado homem com sede de vingança pelas agruras que experimentou. Muito provavelmente, a figura que emerge do Planalto nesses 100 dias está sustentada no tripé de vertentes aqui traçadas. O próprio presidente deseja (e vez por outra manifesta) deixar um antológico legado. Acredita apenas e piamente nos menos favorecidos, que nunca o abandonaram, e está literalmente se lixando para o que pensam, desejam e cobram os senhores da produção. É possível identificar até uma certa ponta de provocação deliberada a essa turma. Esqueça, de vez, a ideia superada do “Lulinha paz e amor”, que ali atrás confabulava e tentava agradar de banqueiros a empreendedores para ser mais digerível como presidente da Nação. O Lula, versão 3.0, não perde mais o sono preocupado em fazer rapapés aos donos do capital. O que o incomoda realmente, deixando-o à beira da irritação, é o imobilismo administrativo e mesmo no plano parlamentar a que foi submetido. Lula está inquieto e insatisfeito com as amarras geradas por contas e déficit público que o impedem de alçar voo, botar na mesa planos ambiciosos de expansão econômica e social. Lula não aceita e se revolta com a realidade do rombo fiscal deixado por seu antecessor. Também não o coloca em condição confortável o fato de estar em minoria no Congresso. Com uma bancada cada dia mais, digamos, venal, que somente lhe dará apoio e sinal verde aos projetos em troca de vantagens — o velho e surrado clientelismo deplorável. Triste verificar – e essa é a impressão do próprio demiurgo de Garanhuns – que deputados e senadores estão pouco se lixando para propostas que sejam legitimamente boas ao Brasil. Reforma tributária, arcabouço fiscal, queda dos juros, fundamentos da retomada só sairão na base de custosos acordos e salamaleques. O presidente, é bem verdade, também está premido e tomado por ideias velhas e teses ideologicamente superadas, que flertam com o retrocesso, como a do freio às privatizações, de revisão das mudanças trabalhistas e mesmo do Marco do Saneamento. O que o levou a isso? Provavelmente um certo compromisso de atender aqueles que lhe foram mais fiéis nos tempos de prisão, colegas de conceitos retrógrados. Lula é tão agradecido a eles como magoado e movido por sede de resposta contra setores e pessoas que julga responsáveis pela condenação pretérita e mácula no seu destino. É difícil que o Lula de agora apague toda essa miscelânea de vivências – duras algumas, felizes outras – que delimitam o atual estágio do seu caráter e dos planos que urde, quase sozinho, nas madrugadas insones do Planalto. Assim sendo, o mandatário que cumpriu os primeiros 100 dias de uma improvável volta ao poder ainda deverá tirar muitas surpresas da cartola. Para felicidade de alguns e desespero de outros.