O primeiro “tête-à-tête” entre Lula e Mauro Vieira após a escolha do diplomata para o Ministério das Relações Exteriores, em 12 de dezembro, centrou-se na construção de um plano de voo do então governo eleito para o reposicionamento do Brasil no exterior. A portas fechadas, o petista colocou sobre a mesa o que esperava para o cumprimento da principal missão do Itamaraty: a reconstrução de pontes. Não à toa, os itinerários de Lula e do chanceler para o primeiro semestre de 2023 refletem um mapa de parceiros comerciais hostilizados ou esquecidos pela gestão Jair Bolsonaro. A mensagem espalhada nos últimos dias é clara: caíram os conflitos causados por ideologia, a democracia triunfou, a despeito do 8 de janeiro, e o Brasil está pronto para ampliar os negócios condicionados à proteção ao Meio Ambiente.

O presidente traduz o novo cartão de visitas do Brasil em gestos. Retomou a tradição quebrada por Bolsonaro de visitar a Argentina na primeira agenda internacional posterior à posse presidencial e reincorporou o Brasil à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), abandonada em 2020. Lula deseja empoderar a América do Sul. “Há uma clara contribuição a ser dada pela região para a construção de uma ordem mundial pacífica, baseada no diálogo, no reforço do multilateralismo e na construção coletiva da multipolaridade”, discursou, na reunião da cúpula.

AJUDA Alberto Fernández com Lula: moeda comum e financiamento do BNDES para novo gasoduto na Argentina (Crédito:Divulgação)

Palco estratégico

O empenho, explicam especialistas, justifica-se por uma ambição maior. “Lula fez o mesmo no início dos anos 2000. O Brasil se tornou um player global, com a fundação do Brics e a presidência do G-20, depois de exercer liderança sobre a América do Sul, impulsionando o Mercosul e a Unasul. O continente é como um palco estratégico para conseguirmos essa visibilidade internacional”, argumenta Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV. Os contornos econômicos, claro, também fazem parte da conta. “Na América do Sul, historicamente, há espaço para uma integração comercial voltada a produtos manufaturados. Ou seja, com a aproximação, vê-se uma tentativa de ativar setores da economia que estão desgastados”.

O movimento é bem-vindo e aplaudido pela comunidade internacional. Se for balizado somente por belas frases, no entanto, não será suficiente para devolver ao País o status de player. Lula precisa apresentar projetos concretos e tangíveis, em vez de se limitar à reciclagem de estratégias de seus dois primeiros mandatos — a decisão de autorizar o BNDES a voltar a financiar projetos no exterior, por exemplo, é um tópico sensível, dada a fragilidade econômica das nações vizinhas e ao fantasma da corrupção, o que, no fim da linha, prejudica a imagem do próprio Brasil.

“O Brasil e os países da Celac têm que tratar Cuba e Venezuela com muito carinho” Luiz Inácio Lula da Silva, presidente

O presidente está atento às ponderações e quer mostrar voz de comando e resultados práticos. Segundo relataram embaixadores a ISTOÉ, Lula planeja reunir presidentes vinculados à região amazônica em Belém (PA), no segundo semestre deste ano. Seria, pontuam, um gesto de compromisso com a área ambiental, no qual o governo externará ao mundo os resultados da recomposição de órgãos como Ibama, ICMBio e Funai, e comprovará a retomada do cuidado com povos indígenas. O status de presidente “pro tempore” do G-20 também pode abrir portas, em 2024. O Brasil ainda está em franca campanha para sediar a COP-30, em 2025, e ganhou dos 33 países que compõem a Celac a garantia de apoio.

“Não brigamos, deixamos claros nossos pontos de diferença. Lula me trouxe otimismo. O Uruguai não pode perder tempo” Lacalle Pou, presidente do Uruguai

No meio tempo, Lula tem de acertar os ponteiros e organizar a casa — a começar pela própria retórica. Não cabe mais fazer palanque político em solo internacional, valendo-se de narrativas próprias do PT, como a de que Michel Temer articulou um golpe contra Dilma Rousseff. Tem de vender harmonia e estabilidade. Além disso, o petista precisa se reposicionar diante do clima político caótico na região. O trato quanto a ditaduras, como a da Venezuela e a de Cuba, divide a América do Sul. O presidente do Chile, Gabriel Boric, por exemplo, não tem boa relação com Nicolás Maduro. No início deste mês, depois de participar da posse de Lula, declarou defender a reincorporação da Venezuela ao circuito internacional, mas condicionou isso a eleições legítimas no país em 2024.

INDEPENDENTE Lacalle Pou quer acordo unilateral com a China e irritou parceiros do Mercosul (Crédito:Mariana Greif )

Jogo duplo

O petista, por sua vez, aposta em um jogo duplo: ancora-se na tradição brasileira de não intervenção em assuntos internos de outros países para evitar condenar o regime venezuelano, mas, ao mesmo tempo, destila críticas ao opositor Juan Guaidó, tratado como presidente interino por parte da comunidade internacional, em 2019. “O que eu quero pro Brasil, quero para a Venezuela: respeito à minha soberania e respeito à autodeterminação do meu povo”, disparou, numa fala dúbia, já que defendeu a democracia no Brasil. Lula ainda retomou as boas relações com Cuba, apertando a mão do presidente Miguel Díaz-Canel, e condenou os embargos econômicos ao país. As ditaduras não são o único imbróglio. Outros países vivem uma convulsão social. No México, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador tenta mudar a lei eleitoral para asfixiar a oposição em seu país. No Peru, os protestos pela renúncia de Dina Boluarte, sucessora de Pedro Castillo, que tentou um golpe de Estado, ganharam as ruas e resultaram em mais de 60 mortes.

O presidente ainda sabe ser uma peça central na preservação da relevância do Mercosul. Não à toa, depois da Argentina, embarcou para Montevidéu, onde conversou com Lacalle Pou, com a missão de desatar um nó górdio. A portas fechadas, tentou impedir o Uruguai de fechar um Tratado de Livre Comércio (TLC) com Pequim. O país tem sido atacado por parceiros do Mercosul por infringir a regra que impede negociações individuais entre seus membros sem o endosso do bloco. Pou mantém-se firme no propósito de expandir os negócios uruguaios, ainda que isso o desgaste com os vizinhos, e assegura que somente uma “oferta melhor” do grupo pode fazê-lo recuar. A posição também mostra a atual fragilidade do bloco sul-americano, que tem dificuldades em avançar em novos tratados e modernizar suas pautas. Depois do tête-à-tête, o tom se suavizou. Lula, aliás, sugeriu a ampliação do acordo com o gigante asiático. “Nós queremos sentar enquanto Mercosul e discutir com nossos amigos chineses um acordo Mercosul-China”.

Embora prioritária na agenda inicial de Lula, a América do Sul não será o único destino do petista no primeiro semestre. Em 9 de fevereiro, Lula deve embarcar para Washington (EUA), para um encontro com Joe Biden. À mesa, uma extensa lista de pautas. Os ataques à democracia nos dois países tendem a ocupar boa parte da conversa. Lula ainda deve colocar o Brasil como um dos países dispostos à atuação como “mediador” na crise provocada pela invasão da Rússia à Ucrânia. O papel, sonham aliados, seria viável porque americanos e europeus não têm condições de exercê-lo por fazerem parte das hostilidades. As nuances das parcerias comerciais, por óbvio, não serão esquecidas. A reunião representará uma virada na mesa da relação entre Brasil e EUA, esfriada na gestão Bolsonaro. Esse período ficou marcado por ataques mútuos — enquanto o capitão buscava descredibilizar o processo eleitoral norte-americano e aplaudia o golpismo de Donald Trump, Biden fazia críticas contundentes ao descaso do governo federal com o aumento do desmate na Amazônia.

EUA, China e Europa

Semanas depois da passagem nos EUA, Lula deve pousar na China. De acordo com aliados, a viagem “grudada” aos principais parceiros comerciais do Brasil demonstra que o presidente pretende manter uma relação fluida e pragmática com as duas nações, apesar do crescimento da rivalidade entre elas por influência política, econômica e militar. A visita ao gigante asiático será uma deferência após anos de xenofobia e racismo destilados por Bolsonaro e sua horda contra os chineses. Lula, ao contrário, está de olho na ampliação dos negócios, uma oportunidade perdida pelo antecessor. “O Brasil perdeu a chance de conversar com a China sobre outros aspectos e deixou passar a capacidade de uma articulação política estratégica dentro dos Brics, de construir parcerias tecnológicas e de comunicação. Ou seja, com Bolsonaro, alocamos a relação com a China simplesmente sob a ótica comercial, focada em exportação — e, embora ela gere renda, principalmente para os setores agrícolas e de extração de minérios, perdemos a chance de crescer”, avalia o especialista em relações internacionais Pedro Brites.

Lula planeja incluir no roteiro, ainda, dois ou três países da África, continente “esquecido” por Bolsonaro, que jamais o visitou. O primeiro aceno ao continente aconteceu durante a participação do petista na COP-27, no Egito, quando ele prometeu “cooperar outra vez com os países mais pobres, sobretudo da África, com investimentos e transferência de tecnologia”. Nomes da cozinha do petista pontuam que o gesto deve retomar a relação histórica entre as nações. Mas sublinham, também, o pragmatismo da ação. Países da África, como a Etiópia, Nigéria e África do Sul, são objetos de disputa na cena econômica global, tanto da Europa, quanto da Índia e da China — os asiáticos, por exemplo, reforçaram nos últimos anos a exportação de automóveis nos negócios.

PRESTÍGIO Lula se reunirá com os principais líderes mundiais nos próximos meses: visitará Joe Biden (EUA) e Xi Jinping (China) e receberá em Brasília Olaf Scholz (Alemanha) e Emmanuel Macron (França) (Crédito:Lenin Nolly/NurPhoto/AFP; Shen Hong/Xinhua/AFP; MUSTAFA YALCIN/Anadolu Agency/AFP; Emmanuel DUNAND/AFP)

A Europa está na fila. O presidente vai receber seus principais líderes em Brasília. O chanceler alemão Olaf Scholz terá uma conversa a sós com Lula na próxima segunda-feira, dia 30. Sucessor de Angela Merkel, Scholz é visto pela gestão Lula como uma peça-chave dentro da União Europeia, capaz de ajudar na retomada do acordo comercial entre o bloco e o Mercosul, travado em 2019 sobretudo por causa dos índices de desmatamento no Brasil. Emmanuel Macron (França) e Pedro Sánchez (Espanha) também visitarão o Planalto. “São lideranças que estavam esperando o desfecho das eleições de 2022 para fechar o itinerário de visita à América do Sul. Eles não passariam por aqui se o resultado fosse a vitória de Bolsonaro”, diz um embaixador, sob reserva. O Brasil, de fato, está voltado ao mundo.