07/10/2020 - 18:18
Foi como uma daquelas coincidências da vida. Eu tinha acabado de visitar o Museu Edmund Freud, instalado no apartamento de Viena onde o papa da psicanálise Sigmund Freud morou por 47 anos até 1938. Depois, em Londres, fui surpreendida com uma linda exposição de seu neto Lucian Michael Freud (1922 – 2011). Apesar de internacionalmente conhecido como um dos mais importantes artistas ingleses do século XX, há poucas oportunidades de ver suas pinturas e gravuras.
Lucian Freud trabalhava com um estilo tradicional representativo e dizia que pintava gente, mas da forma como elas parecem de verdade. Gostava de produzir retratos de pessoas que tinham importância em sua vida. Entre os amigos, pintou artistas como Frank Auerbach e Henrietta Moraes, que era considerada uma musa para muitos artistas do bairro londrino de Soho. Todos os personagens aparecem largados nas pinturas e a grande maioria deles está sem roupa.
Suas primeiras pinturas foram associadas com o surrealismo por apresentar pessoas e plantas em posições distorcidas, bem estranhas. A partir da década de 1950, começou a produzir retratos com modelos sem roupa no chão ou na cama. Sua obra é notável pelas suas formas incomuns, movimentos radicais e com pinceis trocados por escovas de animais para ganhar um estilo mais rústico. Espalhava a tinta de forma densa e esperava que grandes pedaços secassem. Não pintou apenas pesadões. Em 2001, terminou um retrato da rainha Isabel II do Reino Unido (com roupa) e outras lindas obras como “Menina com um cão branco e Homem nu com chapéu”.
Suas pinturas geram um frio na espinha para quem as observa. Gostava de retratar seus personagens em cenas de miséria boêmia e seus nus não eram sensuais. Pelo contrário. Criava um mix de melancolia frágil e insinuava pavor. Seus temas são imersos em apetites carnais e sexo, explorando a carnalidade da pintura e a implacável degeneração da carne. Por muitas vezes, mergulhou profundamente no distanciamento fisiológico para criar retratos que parecessem cruéis. É comum espectadores relatarem que ficam desconfortáveis e com raiva ao ver seu trabalho.
Às vezes, quando uma pintura estava quase pronta, Freud se afastava da tela e perguntava como se estivesse zombando de si mesmo: “Até onde você pode ir?” Esse questionamento estava no centro de sua carreira. Viveu no limite toda a sua vida. Começando na juventude a roubar de seus pais para jogar, continuo a brincadeira depois de adulto e seguiu dessa forma até os últimos dias da vida, inclusive brigando com estranhos aos oitenta anos. Dizia que os impulsos precisam ser plenamente são explorados. Um bom exemplo dessa crença é o autorretrato “Man with a Feather” (1943). Depois de se socar com um taxista em Londres, ele correu para seu estúdio para documentar o olho roxo, os hematomas e a pálpebra inchada.
Lucian Freud dizia que “um retrato é a representação de um corpo que foi criado pelo toque de outro”. Por isso que, na sua visão, nem todo mundo era adequado para ser pintado por ele. Posar para Freud era muito trabalhoso e desconcertante. Ele queria que os modelos tirassem suas roupas e se espalhassem em uma cama ou em pilha de trapos em poses desconfortáveis por horas a fio. Chegava perto e acariciava seus ossos e músculos como um treinador em um estábulo passando a mão sobre o cavalo antes da corrida. Desonesto e compulsivamente reservado, ele mudou de endereço em endereço e nunca se registrou para votar para não deixar rastros públicos de seu paradeiro. Era improvavelmente bonito e fantasticamente carismático, com a habilidade de convencer os outros a fazerem seus desejos mais idiotas.
Ele perseguiu seus temas com a rigidez de uma pedra. Com isso, sua obra pode ser classificada como autobiográfica e associada com memória, movimento e sensualidade. Ele era destemido na arte e na vida. Andava com gangsteres nos anos 60, ocasionalmente fugia da polícia, tinha dívidas com jogo e sempre estava envolvido em brigas. Vivi caçando mulheres para pintar, seduzir e fazer parte da sua vida. Teve centenas de amantes, 14 filhos reconhecidos e dezenas de bastardos.
Seu avô teria trabalho para analisá-lo. Era egoísta e negligente com quem amava. Praticamente abandonou os filhos e quem ler as memórias deles ficará chocado com a crueldade do artista na vida pessoal. Chocava o mundo com seus retratos psicologicamente investigativos. Testou o limite do bom senso quando produziu seis retratos de nus de suas filhas e um de seus filhos. Indiferente às críticas, ele simplesmente continuou pintando. Então, pode-se dizer que não é a primeira vez na história da arte que tanta beleza foi criada por alguém que fez tantas coisas feias.
Freud foi abraçado por seus compatriotas talvez pelo fato de os ingleses não produzirem mais do que alguns grandes artistas a cada século. Existem muitas defesas para proteger seu estilo maluco de ser e há um consenso entre os críticos de que ele teria começado a fazer sucesso muito jovem e que, ‘coitado’, foi muito isolado por sua família burguesa. Sua narrativa estava relacionada a um estilo moderno que acaba muitas vezes sendo associado à figuração contorcida de Ferdinand Hodler, aos retratos macabros de Oskar Kokoschka e à exploração da forma feminina de Egon Schiele.
Deixava as modelos no anonimato, salvo raras exceções que encomendavam retratos. A supermodelo Kate Moss, por exemplo, foi pintada enquanto estava grávida. Na base de sua espinha, Freud desenhou duas andorinhas em sua pele. Ela disse brincando que tinha no corpo “Um Freud original” e que se arrancasse esse pedacinho de carne poderia vender o desenho por milhões.
Morreu em julho de 2011, aos 88 anos, com o mesmo estado de espírito inquieto que marcou seu trabalho artístico e o acompanhou por toda a vida. Recomendo que vejam suas obras para dissecar suas feridas nos autorretratos ao invés de ler uma de suas biografias (risos!). Se tiver uma boa história para compartilhar, aguardo sugestões pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou no Twitter.