RIO DE JANEIRO Operação da Polícia Civil prendeu onze pessoas: família e gangue como sinônimos (Crédito:Jose Lucena)

A maldade é senhora de tão perfeitos disfarces de bondade que, ao descobri-la, muitas vezes tem-se a impressão de que se está no universo da ficção e não na vida real. A história que aqui vai se contar é, no entanto, dura realidade, muito embora pudesse ser uma fábula. Dura realidade com tentativas de envenenamento e assassinato com trinta tiros sob o véu da generosidade e altruísmo. Dura realidade e sua protagonista, pastora, cantora gospel e deputada federal, tem nome de flor. Cactos com nome de flor sem espinhos ­— Flordelis. Na semana passada, a polícia e o Ministério Público do Rio de Janeiro anunciaram um surpreendente desfecho nas investigações sobre o assassinato do pastor Anderson do Carmo, morto em sua casa, em Niterói, em junho do ano passado. A sua esposa, Flordelis dos Santos de Souza, tornou-se ré acusada desse homicídio triplamente qualificado, mais tentativa de homicídio também qualificado, associação criminosa e falsidade ideológica. A arma do crime? Foi financiada por ela. Flordelis! Flordelis! Flordelis e sua candura! Mas justo ela, a pastora que exaltava o casamento nas músicas que entoava em cultos e discos? Mas justo ela que sisuda e bem composta defendia a moral e a família na tribuna da Câmara? Mas justo ela que adotara cinquenta e um filhos que vieram somar-se a seus quatro filhos biológicos? Mas justo ela que era um poço sem fundo de bondade? “Nada que é humano me é estranho”, escreveu certa vez William Shakespeare. Sigamos, pois, o dramaturgo que se fez exímio na corajosa tarefa de perscrutar a alma humana.

Os dissimulados sabem, como ninguém, maquiar-se diante de cada espelho de ocasião. São cactos com nome de flor sem espinho — Flordelis

“Ele é ruim de morrer”

Flordelis e Anderson não adotavam crianças ­— colecionavam-nas. Dessa forma montou-se uma absurdamente numerosa família, sem que houvesse cuidados com a educação e, mais que isso, com a formação ética. Era cada um por si, com o temperamento e a personalidade que a genética ou Deus lhes deram. A rigor, mascarada pela bondosa imagem que vinha a público, o que ocorria era a instrumentalização desses adotados, e também da prole biológica que teve com dois maridos anteriores — a manipulação ajudava a alavancar as carreiras artística e política. Os filhos eram troféus a ser exibidos em um projeto combinando política e messianismo, no sentido de que não basta fazer o bem, mas é imprescindível mostrar que se está fazendo o bem. Tudo isso já é, em si, altamente condenável, mas os dissimulados sabem, como ninguém, maquiar-se diante de cada espelho de ocasião. Quanto à vida privada, do que se depreende das análises da polícia, nesse ponto a esbórnia e orgia eram prevalentes, com os filhos já adultos, e delas, ainda de acordo com as autoridades do processo, também tomava parte o ponderado pastor Anderson. Como pôde a acusada de megera passar-se por fada durante tanto tempo? “É um caso que mexe muito com os dogmas da sociedade, do que consideramos certo e errado em meio às crenças humanas”, diz o neuropsicólogo da USP Mauricio Daud. “É uma história que parece realismo fantástico, um romance”, diz o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj.

Tudo tão escabroso e tudo tão pudico, tudo tão ficção mas, na verdade, tudo tão realidade. Flordelis, ao adotar crianças, pensava em esperá-las crescer e daí arregimentá-las para a cumplicidade do assassinato do pai adotivo? Não, claro que não. O destino fez a sua dança ao perceber que Flordelis e Anderson competiam (e desculpem aqui a informalidade da linguagem) em espichar os olhos para ter o controle dos bens que iam adquirindo, do dinheiro que iam ganhando, do poder que iam conquistando. Nesse momento, que são os tempos bem mais recentes, e de novo nos valendo da inspiração shakespeareana, a vida tornou-se uma trilha na qual o louco conduzia o cego. Flordelis envolveu no mínimo dez filhos, entre biológicos e adotivos, e uma neta, numa macabra trama. Ainda que ela seja considerada a mandante do assassinato não será presa. Motivo? Imunidade parlamentar que só permite a prisão de políticos no caso de flagrante, em crime inafiançável ou quando a sentença já foi transitada em julgado. Antes dos tiros, deram-se seis tentativas de envenenamento, era arsênico no feijão, era arsênico no molho do macarrão, era arsênico nas sobremesas que o deixavam com água na boca ao vê-las e com o estômago sangrando ao comê-las. Anderson sofria mas sobrevivia. “Ele é ruim de morrer”, teria escrito uma das filhas envenenadoras, conforme declarações da polícia. “Esse é um tipo de personalidade perversa, que deseja, justamente, ver o mal do outro”, diz Daud.

Era preciso mudar os planos, e, ainda nos balizando pelas entrevistas das autoridades responsáveis pela persecução penal, Flordelis deu dinheiro para um filho comprar a arma do crime, deu dinheiro para outro atirar, deu dinheiro para mais um maquiar toda a cena e, assim, seguiu-se um mortal efeito dominó. Dê-se voz ao promotor Sergio Lopes Pereira sobre mensagens trocadas entre os familiares: “ela (Flordelis) fala da seguinte maneira. Fazer o quê? Separar dele não posso, porque senão ia escandalizar o nome de Deus”. Lopes Pereira conclui: “então ela resolve matar. Ou seja, nessa lógica torta, o assassinato escandalizaria menos”. Matar é, sem dúvidas, o mais torto dos caminhos. Contraditório também é que apesar das aparências de um casamento perfeito, as investigações ainda dizem que Flordelis frequentava casas de swing e dentro desses ambientes de adultério mantinha um quarto exclusivo – no qual é preciso muito dinheiro para tal. Seguindo com a palavra o promotor, ele diz: “havia a imagem de um casal perfeito que criou cinquenta e cinco filhos, mas isso não é verdade. Foi um golpe, um jeito de conseguir proteção”. Não bastasse o que se narrou, sobra ainda para Flordelis a acusação de um crime muito em voga: a prática de “rachadinha”. Ela empregava filhas e filhos e neta em seu gabinete de deputada federal (PSD) e eles davam-lhe suculenta parte do suculento salário que recebiam. “Imagina o ambiente de confusão, guerra emocional e tensão contido nessa família”, declarou à época da morte de Anderson o também pastor Caio Fábio D’Araújo Filho. “Não se pode sair pegando filhos em série porque se corre o risco de criar pequenas gangues familiares”. A realidade, não a ficção, é que a gangue se formou, a partir da própria mãe que planificou por dinheiro e poder a morte do marido.

Sabe-se que o rei Luís VII, da França, ornamentava o selo de suas missivas com uma flor de lis, como narra Mirande Bruce-Mitford. A Flor de Lis da nobreza parisiense se tornou Flordelis em Jacarezinho, depois em Botafogo, por fim em Niterói. Sabe-se, também, ensinou-nos Abraham Lincoln, que “pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar todos por todo o tempo”. Foi isso o se deu com Flordelis e parte da família.