Luto está na moda. Dada a proximidade do período pandêmico, é compreensível. Livrarias terão que abrir seções temáticas pela quantidade de lançamentos. Já na China, a apropriação indébita do pesar alheio foi jogada no liquidificador da Inteligência Artificial e o resultado é o pior possível.

Com US$ 700, uns 30 segundos de vídeo, mensagens de áudio e uma boa quantidade de mensagens de texto trocadas com o/a falecido/a é possível criar um avatar realista que fala, se move e responde como a pessoa. O serviço de ghostbots (robôs-fantasmas) não é novo, e diante da crescente concorrência, o valor cai a cada defunto perturbado em sua paz sepulcral.

Quem quiser se pós-graduar em forma insensata de processamento de luto pode fazer escala na Espanha, onde opera a Mind Hunters. Eles possuem uma equipe capaz de fazer “perguntas apropriadas” para que o proponente descreva em detalhes situação que viveu (ou gostaria de viver) e esta seja gerada pela IA em representação estática (foto) ou em movimento (vídeo).

A empresa alega que seu propósito é “reconstruir lembranças a pessoas em situação vulnerável”. Para ambas as situações, confio que existe jurisprudência na Declaração de Helsinque, de 1964, que estabelece princípios éticos para pesquisas
médicas envolvendo seres humanos.

Só que não é de hoje que a epidemia de complexo de Deus que corre solta no Vale do Silício ensaia contagiar o mundo de quem fez um curso de big data. Faça uma pesquisa simples e veja quanto os bilionários tech gastam em programas de longevidade ou mesmo em ações para preservação de fortunas depois de mortos, já que têm na criogenia a esperança de serem mantidos congelados até que colegas futuros os ressuscitem.

Só que tratam de dilemas éticos para os quais não estão preparados e a ressurreição digital é uma pequena fatia dos experimentos que produzem. Cobaias que tiveram eletrodos cerebrais implantados relatam alteração perceptível no senso de identidade. Sem contar que o ser humano é único, possuidor de perspectiva definida por fontes diversas, como condição socioeconômica, religião e etnia.

E que a base de seu direito enquanto humano é o arbítrio.

Tornou-se, assim, dever global a previsão de tecnologias com impacto negativo sobre a vida, como essas.

Para recorrer ao título deste artigo, recorro a um dos lançamentos literários sobre luto, Uma mulher, onde a francesa Annie Ernaux discorre sobre a morte da mãe. “Alguns pensamentos deixam um buraco em mim: pela primeira vez, ela não vai ver a primavera” é lido como um soco por quem perdeu a genitora. “Ela nunca mais estará em lugar nenhum do mundo”, emenda a autora no fígado. E finaliza resumindo em 37 letras o dilema existencial de todo órfão: “Perdi o último vínculo com o mundo do qual vim”. Bastam três frases para colocar a nocaute todo um séquito de aspirantes a deidades.