Lidos fora do contexto em que foram escritos, muitos dos textos de Correio Para Mulheres podem chocar. É preciso voltar no tempo – para 1952, depois para 1959, 1960 e 1961. E é preciso entender quem era a mulher brasileira de classe média alta, leitora de jornais, mais especificamente das páginas femininas de periódicos como Comício, Diário da Noite e Correio da Manhã. Foi para elas que Clarice Lispector (1920-1977), usando pseudônimo, deu dicas de beleza e sedução; receitas culinárias, de produtos de limpeza e cosméticos; conselhos sobre como educar os filhos, ser uma boa esposa, cuidar da casa e se relacionar com a empregada.

Uma das grandes escritoras brasileiras, autora de obras como Perto do Coração Selvagem, A Paixão Segundo G. H. e A Hora da Estrela, Clarice Lispector foi também jornalista durante toda a vida e em duas fases, uma de mais aperto financeiro, foi responsável por três colunas femininas que somam cerca de 450 textos sobre assuntos triviais.

Foi nesse universo que a jornalista e professora de Literatura Brasileira Aparecida Maria Nunes mergulhou ao longo de anos de pesquisa. Dali surgiram três livros: Clarice na Cabeceira: Jornalismo (2012), Só Para Mulheres: Conselhos, Receitas, Segredos (2008) e Correio Feminino (2006). Correio Para Mulheres, o título que a Rocco está mandando para as livrarias, reúne esses dois últimos volumes e apresenta, por meio de um apanhado de textos (sem indicação de data ou origem) organizados em blocos temáticos um panorama da fase Clarice conselheira de assuntos cotidianos.

Tereza Quadros foi seu primeiro pseudônimo. Já casada e passando uma temporada no Brasil, depois de anos vivendo na Europa e enquanto aguardava a transferência do marido diplomata para os Estados Unidos, Clarice aceitou o convite do escritor Rubem Braga para fazer a coluna Entre Mulheres no Comício.

Ali, entre maio e setembro, de 1952, escreve para uma mulher às voltas com os afazeres domésticos e que ainda não trabalha fora. Receitas e conselhos se misturam a textos mais literários, em que vemos uma escritora em formação e embriões de histórias que a tornariam célebre, e a abordagem de assuntos mais ousados, como quando traduziu trecho de O Segundo Sexo, lançado por Simone de Beauvoir na França.

Biógrafa de Clarice Lispector, Nádia Battella Gotlib diz que ao incluir nas colunas textos ficcionais mais eruditos, ela presta sua colaboração para uma melhor percepção da arte por parte de suas leitoras. “De certa forma, educa”, diz. Para Nádia, no entanto, mais importante que isso ou as dicas de Clarice sobre como tirar mancha de tecido ou usar perfume sem excesso e na hora certa, está o uso que ela faz do espaço para publicar textos que não são mais da jornalista ou de Tereza Quadros, mas da autora.

É o caso, por exemplo, ela conta, do texto Meio cômico, mas eficaz…, uma receita de como matar baratas, que anunciava o conto A Quinta História e o romance A Paixão Segundo G. H.

“Sob esse aspecto, permite acompanhar a história de alguns temas importantes de sua ficção, como o tal crime – o assassinato de baratas – ou, se quiserem, a difícil tarefa de como enfrentar os nossos fantasmas. E eu pergunto: não estaria aí a receita de ‘matar leitores’, aviada pela ficcionista Clarice, que joga com a sedução de imagens para nos atrair, mas também injeta nessa poção a experiência de uma cultura cheia de preconceitos, vícios, fantasmas, selvagerias que temos de enfrentar como condição da própria sobrevivência e do aperfeiçoamento de nossa sensibilidade e de nossa disponibilidade para sermos, de fato, o que somos, selvagens e humanos?”, questiona.

Em 1959, nasce Helen Palmer para assinar a coluna Feira de Utilidades, no Correio da Manhã. Nessa época, Clarice está de volta ao Brasil, separada e com dois filhos para criar, e aceita o trabalho – e também o convite de Alberto Dines para ser, entre 1960 e 1961, no Diário da Noite, ghost writer da atriz Ilka Soares, a quem chamou, numa crônica do Jornal do Brasil, em 1970, de “a vedete das mais simpáticas e bonitas”. Fez isso mais por dinheiro do que por prazer de retomar os textos femininos dedicados, agora, a uma mulher que começa a ingressar no mercado de trabalho, que está interessada no mundo da moda e da beleza, mas que continua às voltas com a casa e a família.

Clarice criou três personagens para se dirigir a suas leitoras, mas, para Aparecida Maria Nunes, organizadora de Correio Feminino, ela também está ali. “Temos muito da pessoa Clarice, do que ela entendida do que é ser uma mulher elegante e feminina. É claro que ela tinha que falar coisas que fossem direcionadas para a leitora de cada uma dessas épocas. Hoje as pessoas questionam: ‘Mas como Clarice disse uma coisa dessas? (cuidar do seu homem, por exemplo)’. Ela tinha que falar. Fazia parte do contexto de época e da estética da imprensa feminina”, diz. “Mas, mesmo fazendo isso, vamos encontrar assuntos, temáticas e preocupações de uma Clarice Lispector que tentava modificar o nível de conscientização dessa leitora. Alguns textos parecem inofensivos, mas Clarice está ali dizendo: ‘Olha, se estude, seja você mesma’. Isso está nas entrelinhas”, completa a pesquisadora.

A professora Dulcília Buitoni, autora de Mulher de Papel: A Representação da Mulher Pela Imprensa Feminina Brasileira (1981) e de Imprensa Feminina (1990), concorda com Aparecida. “Mesmo nos conselhos domésticos, sempre havia uma ironia, uma crítica, algo a ser lido nas entrelinhas”, conta.

Em alguns casos, o recado era dado discretamente. Em outros, o chacoalhão era explícito. Em Para Não Bobear, ela diz que ler é um hábito que todo mundo deveria ter para não se tornar uma jovem que diz bobagens com os “lábios perfeitamente maquiados”. Vai além em Eva e a Leitura: “A leitura instrui e educa, eleva os pensamentos e faz com que pessoas se irmanem melhor, compreendendo que vivem em comunidade”.

“Clarice continua sendo Clarice também nessas páginas femininas ao nos desvendar mazelas e encantos da condição humana na banal rotina que esconde difíceis – e atraentes – descobertas de nossa própria intimidade”, conclui a biógrafa Nádia.

CORREIO PARA MULHERES

Autora: Clarice Lispector

Organização: Aparecida Maria Nunes

Editora: Rocco (400 págs.; R$ 49,90; R$ 29,90 o e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.