Obra acusando renomado intelectual francês de molestar seu próprio enteado leva milhares a revelarem nas redes sociais que também foram vítimas de familiares, gerando um novo movimento “Me Too”.Os Kouchners e Duhamels são membros conhecidos da elite intelectual parisiense, com muitos amigos de sucesso nos círculos acadêmicos e políticos. Bernard Kouchner, co-fundador da ONG Médicos sem Fronteiras e político que já serviu como ministro várias vezes, costuma ser convidado para programas de entrevistas na televisão.

Sua primeira esposa, Evelyne Pisier, morta em 2017, era professora de direito. Eles tiveram três filhos. Depois de se separarem, ela se casou com Olivier Duhamel, um renomado cientista político e conselheiro do governo, com quem adotou dois filhos. Ele agora é acusado de abusar de seu enteado.

Em seu recente livro, Camille Kouchner, filha de Bernard Kouchner e Pisier, faz alegações que levaram a França a debater sobre incesto. Mas em La Familia Grande, a autora também descreve o ambiente privilegiado em que cresceu. Na família, as noções de esquerda pós-1968 estavam na ordem do dia, havia uma ideia de que a liberdade deveria ser irrestrita, era proibido proibir. À medida que esse meio se tornou menos radical na década de 80, passou a ser chamado de “esquerda caviar”.

Sedução em família

O livro de Kouchner começa com descrições da formação social e política de sua família e contos de maravilhosas férias de infância na Riviera Francesa, onde parentes, amigos e filhos viviam juntos, discutindo política e cultura, e flertando fortemente. Havia uma ideia de que a sedução tinha que ser intelectual e sexual. Não havia contenção, não havia ideia de vergonha, que se considerava pequeno-burguesa. Ninguém pensava em proteger as crianças.

E é aqui que Kouchner aponta que começou o abuso de seu irmão gêmeo Viktor (cujo nome foi mudado em seu livro). Ela afirma que eles tinham 12 anos quando seu padrasto Olivier Duhamel começou a molestar o garoto. O abuso continuou por dois anos. Ela escreve que sabia que algo estava acontecendo, mas não entendia exatamente o quê. Ela diz que não sabia se devia contar à mãe e a outros parentes, mas que seu irmão disse a ela que embora eles fossem acreditar nele, eles não dariam importância.

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Camille manteve o segredo, mas isso envenenou seu relacionamento com a mãe. Em 2008, ela não conseguiu mais segurar a língua e falou com sua família sobre o abuso. Mas a previsão de Viktor se revelou verdadeira: a “família grande” cerrou as fileiras, manteve o silêncio e continuou como se nada tivesse acontecido. O que havia era mais a raiva dirigida a Camille e Viktor por ousarem falar.

Fim do silêncio

A publicação do livro acabou com o silêncio. Olivier Duhamel renunciou a todos os seus cargos, embora não tenha respondido às acusações. O pai dos gêmeos, Bernard Kouchner, fez a seguinte declaração: “Um grande segredo que pesava sobre nós por tanto tempo foi revelado. Admiro a coragem de minha filha, Camille”, escreveu. Mas também ele fazia parte da conspiração do silêncio.

O escândalo abriu as comportas para um debate sobre incesto na França que não parece perto de chegar a um fim. Milhares começaram revelar incidentes de abuso sexual dentro de suas próprias famílias.

Uma ativista que atende pelo nome de Marie Chenevance – que também é o nome de uma canção sobre incesto da popular cantora francesa Barbara – compartilhou suas próprias experiências no Twitter e cunhou uma nova hashtag que gerou uma enxurrada de mensagens semelhantes: “Eu tinha cinco anos de idade”, ela escreveu. “E uma noite, o irmão de minha mãe destruiu minha inocência e escureceu o resto de meus dias. No espaço de um segundo eu fiz 100 anos. #metooinceste.”

“Eu tinha 13 anos, ele, 26. Ele era meu tio. Um oficial da Marinha.”

“Meu pai me dizia que era normal descobrir como o corpo de sua filha estava se desenvolvendo.”

“Eu tinha 6 anos, depois 7, 8 e 9 quando meu irmão me estuprou.”

Esses são apenas alguns exemplos.

Fim da impunidade

“A França ficou eletrizada por todos esses testemunhos”, diz Muriel Salmona, psiquiatra especializada em violência doméstica e sexual. “É como se a fala tivesse sido liberada. Com um golpe, graças ao livro de Camille Kouchner, havia uma espécie de segurança (mútua). É como se uma bomba explodisse.”


Ela diz que muitas vítimas tinham dificuldade em revelar o abuso sexual porque estavam com medo e ainda tinham afeto por suas famílias. A especialista afirma que o problema também era que eles viviam em uma sociedade que continuava a negar o problema.

Além disso, algumas vítimas sofreram perdas de memória devido ao trauma e só compreenderam a situação décadas depois. Salmona acredita ser bom que as plataformas de mídia social tenham aberto um espaço de revelação, debate e solidariedade.

A psiquiatra também destaca que, embora o abuso sexual de crianças exista em todo o mundo, o que é tipicamente francês é sua justificativa por uma elite privilegiada, principalmente nas décadas de 1970 e 1980. “Se alguém tem poder, e Roman Polanski é um exemplo perfeito, ele pode fazer o que quer”, explica. “Ele tem uma certa liberdade porque ele é um intelectual, um escritor, um artista”, afirma. “E isso pode ir tão longe como um abuso infantil.”

Salmona diz ter esperança de que o sistema judicial francês finalmente mude, lamentando o fato de que, no passado, tais crimes tenham ficado impunes. Ela diz ser importante que a ideia do consentimento seja abandonada, considerando que as crianças nunca estiveram em posição de dar consentimento para tais crimes.

Ela também recomenda que todos aqueles que trabalham com crianças, como professores, assistentes sociais e psicólogos, sejam capacitados para compreender melhor a realidade da violência sexual nas famílias. “É preciso haver uma nova sensibilidade”, alerta.

O Ministério Público de Paris abriu uma investigação sobre o caso Duhamel-Kouchner.


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