25/09/2023 - 17:00
A fotografia analógica de três crianças se divertindo no mar de Araruama em março de 1989, no Rio de Janeiro, é o pontapé da narrativa do vereador Carlos Bolsonaro nas 52 páginas do livro “Redes Sociais e Jair Bolsonaro, o começo de tudo”, lançado há pouco mais de uma semana em formato digital. A obra conta a versão do filho “zero dois” do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre como o clã da zona oeste da capital fluminense deixou de lado a pecha de políticos locais – representantes das causas militares – para arrebatar milhões de seguidores ao expor, segundo ele, uma “perspectiva mais verdadeira, sem vícios tendenciosos” dos fatos.
Construído sob generalidades de uma suposta “visão positiva” do País, em contraponto à “grande mídia”, o livro de R$ 54,90 tece críticas à imprensa do início ao fim e ignora as acusações que envolvem o chamado “gabinete do ódio”, grupo que atuou no Palácio do Planalto para atacar adversários e instituições do Estado. O caso foi revelado pelo Estadão no início do governo Bolsonaro.
São seis capítulos. “O começo de tudo”, a introdução dos Bolsonaro no digital, se dá com a criação do blog “famíliabolsonaro.blogspot.com”, em meados de 2010, pouco após o então deputado do baixo clero Jair Bolsonaro se eleger, pela sexta vez, deputado federal pelo Rio, com 120 mil votos. Na publicação de estreia, três garotos louros de 7, 6 e 4 anos posam para uma câmara analógica em uma das praias da Região dos Lagos do Estado. Na prática, a plataforma era utilizada como um álbum de fotos dos Bolsonaro, com destaques, posteriormente, aos mandatos dos três irmãos e de Jair na política.
“Em 2009, com cerca de 26 anos, a minha mente estava cheia de inquietação. O mundo ao meu redor inundado por notícias sombrias e negativas colocadas de forma proposital pelos veículos de informação, e eu sentia que precisava fazer algo para contrapor essa maré de covardia que assolava os meios de comunicação. Foi nesse contexto que a semente da ideia de criar um blog de fotos com um propósito diferente começou a brotar. A partir dessa crença, surgiu o blog “Família Bolsonaro” – um nome que carregava em si a promessa de uma perspectiva mais verdadeira, sem vícios tendenciosos jornalísticos, expondo fotos e posteriormente fatos que contrapusessem a narrativa da grande mídia”, relata Carlos no livro.
A cada capítulo, Carlos aumenta o tom contra a imprensa: “na maior parte das vezes (a imprensa) enfatizava as notícias negativas, perpetuando uma visa~o distorcida da realidade”. A contraofensiva do clã, segundo ele, era baseado em abordar os mesmo temas dos veículos tradicionais sob “uma perspectiva positiva”. O mesmo argumento é repetido outras 15 vezes ao longo do texto.
“A abordagem positiva para os temas não era apenas uma estratégia, mas uma filosofia que simplesmente transbordava o coração a ponto de transmitir energia e força para capilarização do movimento”, diz em um dos trechos, repetido posteriormente: “Ao abordar os mesmos to´picos e temas sob uma perspectiva positiva, estava criando uma abordagem alternativa e autêntica para entender o mundo ao nosso redor, fazendo com que cada indivíduo tirasse suas próprias conclusões sem intermediários, somente mediante apresentação de informações”, sustenta.
Um levantamento da Escola de Comunicação Digital da FGV Rio, à pedido do Estadão, mostra que, entre janeiro de 2018 e setembro de 2023, o filho do ex-presidente fez mais de 17 mil postagens no X (Twitter). Destas, ao menos 1,6 mil criticam a imprensa.
O estudo mostra ainda um aumento expressivo no volume de críticas aos veículos de comunicação e aos jornalistas em 2022, ano em que Bolsonaro perdeu a reeleição para Luiz Inácio Lula da Silva. No ano anterior, em 2021, foram 240 conteúdos sobre a imprensa, enquanto em 2022 as críticas somaram 516 postagens. Entre os nomes que Carlos se refere negativamente a imprensa estão “gabinete do ódio”, “milícia digital” , “imprensa militante” e “assessoria do Lula”.
Livro ignora gabinete do ódio
O livro ignora as acusações de envolvimento da família Bolsonaro no esquema de milícias digitais, grupo conhecido como “gabinete do ódio” que promoveu desinformação e ataques contra adversários e instituições com objetivo de “obter vantagens para o próprio grupo ideológico e auferir lucros”. Segundo conclusões da delegada federal Denise Dias Rosa Ribeiro, responsável por um dos inquéritos da Polícia Federal (PF) que apura o grupo promove desinformação e ataques contra adversários e instituições com objetivo de “obter vantagens para o próprio grupo ideológico e auferir lucros”.
Em um dos trechos do livro, Carlos expõe o principal método de atuação do bolsonarismo nas redes: a comunicação baseada “não só em fatos em informações precisas”. Segundo o filho do ex-presidente, a abordagem tinha como objetivo “contribuir para um debate público mais saudável e produtivo”.
De acordo com o pesquisador Victor Rabello Piaia, professor da FGV, o clã Bolsonaro usou de opiniões polêmicas e posicionamentos questionáveis para deixar a posição de “políticos de nicho”: “É aí que ele começa a falar para um público maior”.
“A ação da família Bolsonaro teve muito a participação do Carlos na construção digital. Apesar do livro não trazer dados, nomes ou pouco falar sobre a estratégia da campanha, é fato a importância do blog da “Família Bolsonaro” para o clã se estruturar e ganhar força no digital. Bolsonaro sempre foi um parlamentar de pouca expressão e que ali, por volta de 2010, ele começa a aparecer sobretudo na base da polêmica. Usam de opiniões polêmicas, de posicionamentos questionáveis, para deixar a posição de deputado de nicho. É aí que ele começa a falar para um público maior”, conta.
O gabinete do ódio está no centro da criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a “CPMI das Fake News”, e motivou a abertura do “inquérito das Fake News” no Supremo Tribunal Federal (STF). As investigações culminaram em operações contra assessores palacianos, deputados, blogueiros e empresários próximos à família Bolsonaro.
Considerado o responsável pela campanha de Bolsonaro nas redes sociais na campanha presidencial de 2018, e curador dos perfis do pai, Carlos criou uma espécie de núcleo de comunicação paralelo à equipe oficial de comunicação do comitê de reeleição do pai. O “zero dois” entrou em atritos com o irmão, o senador Flávio Bolsonaro, durante a campanha por defender uma estratégia mais bélica do que a adotada pelo PL.
No livro, Carlos explica que o foco da comunicação deveria ser o uso das redes sociais.
“Plataformas como Twitter e Facebook ganharam destaque, oferecendo novas maneiras de alcançar um público diversificado e interagir com pessoas de todos os cantos”, diz.
Limites da lei
O ex-presidente e seus filhos já receberam punições das principais plataformas de redes sociais por disseminação de desinformação. Bolsonaro chegou a ter publicações excluídas, por exemplo. Carlos e Eduardo Bolsonaro, deputado estadual por São Paulo, tiveram contas no Twitter e no Facebook suspensas temporariamente.
Sem citar qualquer punição ou investigação em andamento, Carlos diz em um dos capítulos do livro que a atuação digital do clã “jamais deve ultrapassar os limites da lei”.
“Lembrando sempre que qualquer inocente sabe que jamais devemos ultrapassar os limites da lei, pois o Código Penal existente há décadas pune infratores caso alguém se sinta lesado por injúria, calúnia ou difamação”, escreve Carlos.
Victor Piaia explica que a ascensão de Bolsonaro no digital se dá em três pilares: o blog, aparições em programas de TV e inserção no WhatsApp.
“A ascenção de Bolsonaro se estrutura em três pilares. O primeira é o blog. O segundo são as aparições em programas de entretenimento na TV. Mapeamos 34 participações de Bolsonaro em programas de entretenimento na TV nesse período. De certa forma, começamos a observar uma confluência de conteúdo. Uma entrada no digital que consegue pautar novos temas e descobrir novos públicos e a TV aberta. Outra linha importante foi a inserção de Bolsonaro no WhatsApp. Foi algo que na campanha de 2018 importante para a construção comunicativa. Tem uma fala dele em 2014 em que ele fala que elegeu o filho deputado federal em São Paulo no WhatsApp e no Facebook. Nessa época ele já tinha clareza da importância das redes”, explica.
Carlos deixa redes do pai
O livro lançou o livro após afirmar que deixaria de administrar as redes sociais do pai. Carlos foi o responsável por criar e comandar as redes de Bolsonaro por mais de dez anos. O vereador ainda desabafou, afirmando que “pessoas ruins” estariam ganhando com seu trabalho e que ele teria sido “tratado de modo que nem um rato mereceria”. “Não acredito mais no que me trouxe até aqui”, acrescentou Carlos.
“Após mais de uma década à frente e ter criado as redes sociais de @jairbolsonaro, informo que muito em breve chegará o fim deste ciclo de vida voluntariado”, postou então no X.
De acordo com o pesquisador da FGV, o livro é “quase uma defesa pessoal do Carlos” após o período do pai na Presidência.
“O livro é quase uma defesa pessoal do Carlos. Ele tenta se colocar como uma figura disruptiva. Ele não menciona os vários casos porque, como figura central na comunicação digital do governo, faz sentido que ele defenda o papel dele e da família”, afirma Victor Piaia.
O livro de Carlos chegou a ficar indisponível para venda na plataforma digital Ebuzz pouco após o lançamento. A plataforma diz que houve um erro de processamento, que já foi resolvido, e negou qualquer “interferência política ou ideológica no processo”.
“Em 23 de agosto, o cliente cadastrou o livro “Redes Sociais e Jair Bolsonaro: O Começo de Tudo” para ser vendido em nossa plataforma. Conforme nosso procedimento padrão, todos os conteúdos submetidos passam por um processo de moderação, que leva 3 dias úteis para ser concluído. Esse processo tem o objetivo de verificar os conteúdos e evitar a divulgação de materiais impróprios, ofensivos ou ilegais. Apesar de termos ultrapassado o prazo inicialmente previsto, gostaríamos de enfatizar que não houve qualquer interferência política ou ideológica no processo. Estamos à disposição para fornecer esclarecimentos adicionais”, explica a plataforma.