Após um trabalho monumental de 15 anos, o clássico da literatura brasileira “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, ganhará uma nova tradução na Alemanha. O esforço do linguista e tradutor Berthold Zilly, de 80 anos, não foi apenas verter a obra para outro idioma, mas superar o desafio histórico de capturar a complexidade e o estranhamento da linguagem roseana, algo que, segundo ele, a primeira e única versão alemã falhou em fazer.
- Esforço monumental: o tradutor alemão Berthold Zilly dedicou 15 anos à nova tradução de “Grande Sertão: Veredas”.
- Correção histórica: o novo trabalho busca fazer justiça à poética de Guimarães Rosa, criticando a tradução anterior por “aplainar” a complexidade e a oralidade do texto original.
- O grande desafio: a principal dificuldade, segundo Zilly, foi capturar o ritmo, a respiração e a oralidade do narrador Riobaldo, que “fala” o romance em vez de escrevê-lo.
- Significado da obra: o tradutor descreve o livro como um “laboratório da alma humana”, que explora os medos, as aspirações e a busca pela paz.
Corrigir o passado
Para Zilly, a primeira tradução da obra, de Curt Meyer-Clason, utilizou “uma estratégia tradutória absolutamente oposta à poética de Guimarães Rosa”. Ele explica que a versão anterior simplificou a narrativa, eliminando as ambiguidades, os neologismos e os “elementos chocantes” que tornam o português de Rosa tão único.
O resultado, segundo o linguista, foi um texto com um “estilo fácil de entender”, que traiu a inovação do original.
O desafio de traduzir a fala de Riobaldo
“Grande Sertão: Veredas”, que completará 70 anos em 2026, narra os dilemas do jagunço Riobaldo, seu amor por Diadorim e seu suposto pacto com o diabo. A genialidade da obra reside na forma como é contada: uma narrativa oral, cheia de invenções de palavras, com uma musicalidade enigmática. “O narrador não escreve o romance, como normalmente acontece. O narrador fala”, afirma Zilly.
Para o tradutor alemão, que já verteu “Os Sertões” de Euclides da Cunha, o maior desafio foi justamente esse. “A principal dificuldade é captar o ritmo, a vida, a respiração, o fôlego do falante, que é o Riobaldo.”
Laboratório da alma humana
A imersão de Zilly foi tão profunda que a palavra “Sertão” nem precisou ser traduzida, pois já consta no principal dicionário alemão, o Duden. Para ele, a obra transcende o regionalismo.
“‘Grande Sertão: Veredas’ é como se fosse um laboratório da alma humana, da sociedade, das aspirações, dos temores e da ânsia por uma vida boa”, conclui.
O desafio de traduzir Guimarães Rosa
A obra de João Guimarães Rosa é notoriamente uma das mais difíceis de traduzir em toda a literatura mundial. O desafio vai muito além do vocabulário, envolvendo a própria estrutura da linguagem. Os principais obstáculos são:
- Neologismos: Rosa criava palavras novas (neologismos) ou dava significados inéditos a termos já existentes, construindo um universo verbal único que é quase impossível de replicar com a mesma sonoridade e impacto em outro idioma.
- Oralidade e ritmo: o texto não foi escrito para ser lido em silêncio, mas para ser “falado”. Ele possui uma musicalidade, uma cadência e um ritmo que imitam a fala do sertanejo. Capturar essa “respiração” da narrativa é o maior desafio.
- Sintaxe poética: o autor subvertia a gramática tradicional, invertendo a ordem das frases e criando uma sintaxe própria. Traduzir essa estrutura sem que ela soe apenas “errada” em outra língua exige imensa habilidade.
- Arcaísmos e regionalismos: Guimarães Rosa misturava palavras antigas (arcaísmos) com o vocabulário específico do sertão, criando uma linguagem que é, ao mesmo tempo, local e universal, atemporal e histórica.