O juiz Fernando Bardelli Silva Fischer, da 9ª Vara Criminal de Curitiba, dedicou parte do seu despacho pela ordem de prisão do ex-governador do Paraná Beto Richa (PSDB) para criticar a vinculação da custódia preventiva “à contemporaneidade dos fatos criminosos”.

Na avaliação do magistrado, “quando se limita o instituto das prisões cautelares a fatos recentemente praticados”, em verdade está se relegando esta modalidade de prisão aos “crimes de pobres”. Em quatro das 33 páginas da decisão, Fischer apontou para “o mantra da contemporaneidade (o mantra da impunidade)”.

Nesta terça-feira, 19, o ex-governador foi preso pela terceira vez em apenas um ano, agora alvo da Operação Quadro Negro – investigação sobre supostos desvios de R$ 22 milhões destinados à construção de escolas da rede pública durante sua gestão como chefe do Executivo paranaense (2011/2018).

De acordo com o juiz, o entendimento que vincula prisão preventiva à contemporaneidade “ecoa sem a devida reflexão crítica, como um verdadeiro mantra da impunidade”.

“O sentimento de impunidade que ecoa no peito da população e macula a imagem e a credibilidade do Poder Judiciário e das Instituições Públicas, não se ameniza com o passar do tempo”, destacou o magistrado.

“Seja nas ruas ou nas redes sociais, o inconformismo com a impunidade da corrupção cada vez mais reverbera em nosso país. E a percepção, pela população, de que medidas judiciais mais enérgicas não atingem as classes politicamente e economicamente privilegiadas, faz nascer uma sensação de mal-estar em relação ao Poder Judiciário, que se exterioriza por meio de expressões de vergonha”, anotou.

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Para o juiz, “a grande resistência do Poder Judiciário em aplicar medidas, como a prisão preventiva, em casos graves de crimes do colarinho branco deriva da ideia da contemporaneidade como requisito intransponível”.

Fischer argumentou que “tal pensamento, ainda que muitas vezes reproduzido de legítima boa-fé, carrega em seu âmago uma tendência discriminatória de seleção de indivíduos potencialmente encarceráveis”.

“A grande maioria das prisões preventivas decretadas decorre da conversão de prisões em flagrante. Ocorre que tais flagrantes geralmente derivam nos denominados crimes comuns, praticados por pessoas de baixa renda que não possuem outra alternativa a não ser se expor pessoalmente na prática criminosa, suportando todos os riscos dela derivados. Nesse contexto de crimes comuns e prisões em flagrante, o discurso da contemporaneidade cai como uma luva”, avalia o juiz que mandou prender Beto Richa.

Segundo o magistrado, “essa lógica não é observada nos crimes do colarinho branco, que são extremamente complexos e bem elaborados, materializados por uma série de condutas que se protraem no tempo, muitas delas dissimuladas e acobertadas por fraudes e falsidades que visam dar ares de legalidades aos ilícitos perpetrados”. O magistrado destacou que a descoberta deste tipo de crime “é muito mais difícil e demanda investigações intrincadas”.

“É inimaginável, por exemplo, que a polícia realize uma prisão em flagrante no exato momento em que um Governador do Estado supostamente se reúna com os seus comparsas para estipular pagamentos de propinas e fraudes à licitação”, afirmou.

“A consequência disso é que o discurso que prega a exigência da contemporaneidade à decretação da prisão preventiva em casos graves de crimes do colarinho branco praticamente inviabiliza essa modalidade cautelar. E pior do que isso, essa prática judicial representa uma recompensa aos criminosos pela sua vil capacidade de dissimular os seus atos ilícitos. Essa verdadeira ode à impunidade é um estímulo a práticas de outros delitos assessórios, como a lavagem de dinheiro e outras falsidades, dos quais só aqueles criminosos que ostentam uma boa condição econômica e política podem se valer.”

Na decisão, Fernando Bardelli Silva Fischer afirmou também que “o discurso politicamente correto de defesa dos direitos do cidadão é cuidadosamente manejado para mascarar escusas intenções de salvaguardar da prisão a casta de ricos e poderosos”.

“Não por acaso, as manifestações a favor da liberdade de criminosos do colarinho branco, que praticaram seus crimes durante um longo período de tempo, convenientemente citam o ano do início da prática criminosa e omitem a data do seu término”, apontou.

Para o magistrado, “a crítica a um suposto ativismo judicial, sob o discurso da proteção da democracia, dissimula um vergonhoso ranço discriminatório que em partes explica os motivos pelos quais nossos cárceres estão lotados de pessoas de baixa renda”.

“Não se trata de uma apologia ao encarceramento de pessoas de alto padrão social, nem de uma vedação à análise de critérios temporais para o fim de decretação de prisões cautelares. O que se busca é conferir um tratamento equânime ao instituto da prisão preventiva, retirando-se o véu que contrafaz toda discriminação sistêmica, de modo a permitir que o Poder Judiciário possa apresentar uma resposta adequada a casos de graves violações”, afirmou.

Prisão


Esta é a terceira vez que Beto Richa é preso em um ano. O ex-governador havia sido capturado na Operação Radiopatrulha e pela Operação Integração, desdobramento da Lava Jato na Justiça Federal.

Defesa

“A defesa de Carlos Alberto Richa esclarece que a determinação de prisão exarada hoje não traz qualquer fundamento. Tratam-se de fatos antigos sobre os quais todos os esclarecimentos necessários já foram feitos. Cumpre lembrar que as fraudes e desvios cometidos em obras de construção e reforma de colégios da rede pública de ensino foram descobertos e denunciados pela própria gestão do ex-governador Beto Richa. Por orientação do ex-governador, no âmbito administrativo, todas as medidas cabíveis contra os autores dos crimes foram tomadas. A defesa repudia o processo de perseguição ao ex-governador e a seus familiares; todavia, segue confiando nas instituições do Poder Judiciário.”


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