Aprender não é fácil e são poucas as crianças que completam o período escolar sem ter que vencer ao menos uma grande dificuldade. Pode ser durante a alfabetização, quando boa parte dos recursos do cérebro são instados a funcionar em harmonia para dar sentido às letras. Ou na hora de compreender e agrupar os números, associando-os à ideia de quantidade. Há ainda quem tenha sofrido para conseguir traçar, no papel, as letras que compõem as palavras de um ditado e os que penaram para organizar as sílabas dessas mesmas palavras na hora de pronunciá-las. “Vencer obstáculos faz parte do processo de aprendizado”, diz Monica Weinstein, fonoaudióloga e doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). “Para a maioria dos alunos em idade escolar, esses contratempos passam.”

“Achavam que os professores davam as respostas pra mim” Guilherme Blaud, 17 anos, foi diagnosticado com dislexia aos oito anos e logo o colégio onde estudava se adaptou às suas dificuldades. Bem acompanhado, descobriu aptidão para a biologia e começa a cursar medicina veterinária neste ano.
“Achavam que os professores davam as respostas pra mim” Guilherme Blaud Pomar, 17 anos, foi diagnosticado com dislexia aos oito anos e logo o colégio onde estudava se adaptou às suas dificuldades. Bem acompanhado, descobriu aptidão para a biologia e começa a cursar medicina veterinária neste ano.

Para alguns, porém, os obstáculos não passam. Pelo contrário, se exacerbam e mal respondem aos recursos usados para remediá-los, como a revisão de conteúdo e o reforço escolar. Nesses casos, há que se considerar a possibilidade de um transtorno de aprendizagem (TA) (leia quadro na página 59). O TA é uma inabilidade específica e permanente manifestada, principalmente, na dificuldade com a leitura (dislexia), a escrita (disgrafia) ou a matemática (discalculia). Entre 5% e 17% da população mundial têm o transtorno, sendo que a dislexia é o mais comum, respondendo por 80% dos diagnósticos. Há suspeita de que sejam hereditários, por terem um componente genético. Sabe-se, também, que embora eles alterem os caminhos neurais usados no aprendizado, podem ser contornados.

“Quem tem um TA é tão ou mais inteligente do que quem não sofre com o transtorno”, diz Rosemari Marquetti de Mello, 55 anos, psicóloga, ex-presidente da Associação Brasileira de Dislexia (ABD) e, ela mesma, disléxica. Testes com quem foi diagnosticado e recentes pesquisas feitas a partir de imagens por ressonância magnética do cérebro comprovam o que diz Rosemari e mostram que, com a adaptação nos métodos de ensino, boa parte dos que tem um transtorno de aprendizagem dá conta da rotina escolar.

“Quando estudo matemática, fico animada” Giulia Marques Caldeira, 11 anos (na foto com a mãe, Suely), foi diagnosticada com dislexia um ano atrás. Hoje, matriculada em um colégio com salas de aula de, no máximo, sete alunos, Giulia tem confiança para ir à escola e tem tido rendimento acima da média.
“Quando estudo matemática, fico animada” Giulia Marques Caldeira, 11 anos (na foto coma mãe, Suely), foi diagnosticada com dislexia um ano atrás. Depois de passar por um colégio que tinha, no máximo, 7 alunos, por sala de aula, ela se adaptou e hoje estuda em um colégio com turmas grandes e tem rendimento acima da média.

Não que isso seja fácil. “Até descobrir o que se passa, tanto a criança quanto os pais costumam sofrer bastante”, diz Aurea Stavale, psicopedagoga e neuropsicóloga do Centro de Avaliação e Encaminhamento da ABD. A agente comercial paulistana Elizandra de Oliveira, mãe de Beatriz de Oliveira Sandoval, 11 anos, conhece bem esse sofrimento. Beatriz foi diagnosticada com dislexia e discalculia pela ABD em agosto de 2016. As dificuldades da menina na escola começaram quando ela tinha sete anos, durante a alfabetização. Ela já havia repetido o primeiro ano do ensino fundamental e os problemas se agravavam. “Minha filha tinha dificuldade para ler e não conseguia agrupar os números”, diz Elizandra. Ao ler 123, por exemplo, ela falava doze três, e não cento e vinte três. Com o diagnóstico, o colégio se adaptou às limitações da menina, que agora tem uma professora para ler as questões de prova para ela – e seu desempenho escolar deu um salto.

Geralmente o tratamento é individualizado, feito por uma equipe multidisciplinar, e o diagnóstico não é simples

“Eu tinha certeza que não era burro ou preguiçoso” Quando foi diagnosticado com dislexia, aos 10 anos, André Piro, hoje com 15 anos, chorou muito e disse a frase acima para a måe Cintia (na foto com ele) Durante anos, o garoto foi ofendido por colegas em sala de aula. Hoje, não mais.
“Eu tinha certeza que não era burro ou preguiçoso” Quando foi diagnosticado com dislexia, aos 10 anos, André Piro, hoje com
15 anos, chorou muito e disse a frase acima para a mãe Cintia (na foto com ele). Durante anos, o garoto foi ofendido por colegas
em sala de aula. Hoje, não mais.

O ponto de partida para a superação das dificuldades impostas por um TA é o trabalhoso e demorado diagnóstico. Os especialistas ouvidos por ISTOÉ são unânimes em dizer que a avaliação que pode identificar um transtorno de aprendizagem precisa ser feita por um time multidisciplinar. Neuropsicólogo, fonoaudiólogo, pedagogo, psicopedagogo, psicólogo e psiquiatra são alguns dos profissionais que costumam se envolver nesta fase. O objetivo do exame conjunto é dar um parecer robusto e poupar a criança e os pais do “pinga-pinga” entre médicos de diferentes especialidades – esforço que, frequentemente, não chega à conclusão alguma, já que não há coordenação entre os profissionais consultados.

Giulia Marques Caldeira, 11 anos, passou por psicopedagogo, fonoaudiólogo e foi praticamente realfabetizada, sem muito sucesso, por uma professora particular até chegar à ABD, onde foi, finalmente, diagnosticada com dislexia. “Ela sofreu muito e foi vítima de bullying”, diz Suely Caldeira, mãe da menina. Até o segundo ano do ensino fundamental, Giulia acompanhava, com dificuldade, o ritmo em sala de aula. Um dia, a professora pediu para que ela lesse um texto em voz alta e, como ela não conseguiu, foi hostilizada pelos colegas. “Foram quase dois anos para ela voltar a ler e escrever”, afirma Suely. Hoje, a menina tem ajuda para interpretar textos e prova adaptada às suas dificuldades. Com a confiança que essas medidas trouxeram, pôde descobrir uma aptidão: a matemática e as ciências, disciplinas nas quais tem tido desempenho acima da média.

“Achava que faculdade não era coisa pra mim” Rosemari Marquetti de Mello, 55 anos, só descobriu sua dislexia e discauculia aos 37 anos. Até lá, se julgava “burra”. Com o diagnóstico e o acompanhamento, se formou psicóloga e chegou a presidir a Associação Brasileira de Dislexia (ABD).
“Achava que faculdade não era coisa pra mim” Rosemari Marquetti de Mello, 55 anos, só descobriu sua dislexia
e discauculia aos 37 anos. Até lá, se julgava “burra”. Com o diagnóstico e o acompanhamento,se formou psicóloga e chegou a presidir a Associação Brasileira de Dislexia (ABD).

Como Giulia, Guilherme Blaud Pomar, de 17 anos, viveu longos e duros períodos de desânimo e dificuldades até chegar onde está: aprovado e matriculado no curso de veterinária da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. Nos piores momentos, Guilherme, que foi diagnosticado com dislexia severa aos oito anos de idade, chegou a questionar o sentido de viver. “Queria tanto prestar atenção em uma aula até o fim, mas não conseguia”, repetia para a mãe, Ruth Blaud Pomar. A partir dos 12 anos, Guilherme passou a frequentar o Grupo Pró-Estudo, que ajuda seus alunos a aprender como aprender. Três vezes por semana, durante duas horas, ele revisa o conteúdo passado em sala de aula, faz lição de casa e se prepara para provas com ajuda de psicólogos da aprendizagem. “Não focamos apenas em um problema ou disciplina, tratamos o estudo como uma coisa global”, diz Nicolau Pergher, doutor em psicologia experimental e coordenador do Grupo Pró-estudo.

As atividades refinam desde hábitos organizacionais – como a habilidade para identificar o tamanho e a dificuldade da tarefa proposta e assim alocar o tempo apropriado para cumpri-la no prazo estipulado – à motivação do aluno, que invariavelmente chega desanimado com as dificuldades enfrentadas na vida acadêmica. “Até 2014, não acreditava em depressão infantil”, diz Cintia Helena Alves Piro, professora e mãe de mãe de André Vitaliano Piro, 15 anos, diagnosticado com dislexia aos 10 anos. “Até que vi no meu filho e descobri que, não só existia, como era terrível”, afirma. Na escola, além das dificuldades acadêmicas, André sofreu bullying. Em 2014, Cintia resolveu se mudar da capital paulista para Sorocaba, no interior do Estado, para matriculá-lo na escola que ele frequenta atualmente. “A diretora abraçou a dislexia do André e tudo melhorou”, afirma.

Dificuldades partilhadas

O transtorno de aprendizagem é uma inabilidade contornável, mas requer atenção especial. Quem tem consegue aprender, mas geralmente por meios um pouco mais longos e, por vezes, tortuosos. Cabe aos pais e às escolas identificarem o caminho ideal para cada aluno com transtorno e trilhá-lo junto com a criança. Pode ser substituindo uma prova dissertativa por uma oral ou trocando as anotações em sala de aula por uma gravação. “Cada caso é um caso”, diz a psicóloga Rosemari. “O que não pode acontecer é a criança receber aquele olhar de fracasso, seja do professor, na sala de aula, dos pais, em casa, ou dos colegas”, afirma. Quando o olhar de quem convive com a criança com a inabilidade é de interesse, confiança e paciência, não há limites para alguém com transtorno de aprendizagem. Beatriz, Giulia, Guilherme, André e Rosemari são prova disso.

Os três transtornos de aprendizagem mais comuns
Eles são os mais frequentes e normalmente aparecem juntos. Confira

Dislexia
É o transtorno de aprendizagem mais amplo, conhecido e estudado. Caracteriza-se pela dificuldade no reconhecimento preciso e fluente da palavra e na habilidade de sua decodificação e soletração. Se manifesta, principalmente, pela dispersão e pelo atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem.

Disgrafia
Pode ou não estar associada à diselxia. Caracteriza-se pela extrema dificuldade com a linguagem escrita e pode ser do tipo motora ou perceptiva. Na motora (disgrafia/discaligrafia), o indivíduo consegue falar e ler, mas não escrever. Na perceptiva, ele não consegue associar o sistema simbólico à grafia das palavras.

Discalculia
É um transtorno de aprendizagem que limita as habilidades para reconhecer e manipular os números. Se manifesta em qualquer operação que exija a compreensão de números, da matemática à sequenciação de datas. Como a disgrafia, pode
ou não estar associada
à dislexia.

Os sinais de que algo pode estar errado
Toda criança já teve ou terá dificuldade de aprendizagem, principalmente durante a alfabetização. Mas com o transtorno é diferente. Fique atento se o seu filho apresentar mais de um desses indícios por período estendido de tempo

1. DESEMPENHO ESCOLAR
Desempenho escolar abaixo do esperado e em mais de uma disciplina

2. CONCENTRAÇÃO
Problemas recorrentes de concentração e organização do tempo
e das tarefas

3. LEITURA
Dificuldade de leitura com fluência e de reconhecimento e trabalho de números

4. MEMÓRIA
Dificuldade para lembrar de tarefas, ideias e raciocínios simples
e recentes

5. MOTIVAÇÃO
Rejeição da escola e de tudo relacionado ao aprendizado, desânimo e tristeza.