A Polícia Federal deflagrou nesta quarta-feira uma operação contra deputados,  influenciadores digitais e empresários bolsonaristas, supostamente envolvidos em um esquema de propagação de fake news. Está aí uma história que não cabe num emoji. Uma história à qual não é possível reagir na base das meras simpatias e aversões políticas.

Fake news são um problema diabolicamente difícil para países que se preocupam com a liberdade de expressão. Há um debate permanente sobre como coibir a difusão mal intencionada de falsidades, ao mesmo tempo em que se evitam danos colaterais, ou seja,  restrições indevidas ao direito dos cidadãos de manifestar seu pensamento. Nenhum país chegou perto ainda de resolver a equação.

As diligências de hoje foram realizadas por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF). São resultado de um inquérito que nasceu de forma polêmica. No ano passado, o presidente da corte, o ministro Dias Toffoli, decidiu apurar ofensas e ameaças que pululavam na internet contra ele e seus colegas de toga. Toffoli não encaminhou o caso ao Ministério Público, como seria natural. Em vez disso, apontou Alexandre de Moraes, outro ministro do STF, para presidir o inquérito.

Mais do que inconstitucional, a medida é de arrepiar os cabelos. Como controlar um órgão que atua nas duas pontas de um processo, a investigação e o julgamento? Não é assim que as coisas funcionam no mundo civilizado. Toffoli e Moraes, contudo, não se impressionaram com as objeções ao procedimento inventado por eles. A Procuradoria Geral da República inicialmente se opôs à novidade, mas depois achou que estava tudo certo. A ação seguiu seu curso.

A ação corre em segredo de Justiça. Alexandre de Moraes não divulgou os argumentos que embasam os procedimentos de busca e apreensão realizados hoje. Na lista de alvos há gente que mantém canais de internet pró-Bolsonaro e contra o resto do mundo. Há empresários como Luciano Hang, que embora seja ativo nas redes sociais, aparentemente é  investigado por financiar o disparo de mensagens em massa. Há um político recém-convertido ao bolsonarismo, o notório Roberto Jefferson, presidente do PTB. São personagens e atuações bastante diferentes. O que exatamente se está querendo desvendar e punir?

Não confio muito nos instintos de Moraes e Toffoli quando se trata de liberdade de expressão. Uma das primeiras medidas adotadas por ambos na ação das fake news foi mandar retirar do ar uma reportagem da revista digital Crusoé dizendo que Toffoli tinha um apelido no sistema de controle de propinas mantido pela construtora Odebrecht. Moraes, na decisão, já foi logo disparando: “Há claro abuso da matéria veiculada.” Logo depois o ministro foi obrigado a revogar a própria sentença. A reportagem se baseava em documentos, não em ilações.

Essa mentalidade é muito comum no meio jurídico brasileiro. Considera-se que proteger um bem privado – a honra de gente famosa, importante ou bacana – vale mais do que deixar circular informação de interesse público. Por causa disso, muitas biografias já foram tiradas do mercado no Brasil. Por causa disso, apaga-se uma reportagem antes de se verificar se ela tem fundamento ou não. Deveria ser o contrário.

Os precedentes não são bons. Por isso, quando se trata de liberdade de expressão, fico com os americanos, que têm de longe o sistema mais liberal do mundo nessa matéria. O sistema não nasceu pronto. Foi construído aos poucos, e quem quiser pode acompanhar a história em um livro excelente, disponível no Brasil: Liberdade Para as Ideias que Odiamos, de Anthony LewisO título já diz tudo.

Nos Estados Unidos, é muito difícil restringir a liberdade de expressão. Até o anonimato é admitido. Pois considera-se que, em algumas circunstâncias, somente o anonimato permite que ideias que são contrárias ao senso comum venham à tona. No Brasil é diferente. O anonimato é expressamente vedado pela Constituição. Concorde-se ou não, a proibição existe, e acredito que esse seria o melhor cavalo de batalha para o STF.

Financiar de maneira encoberta sites de comentário político ou disparos de mensagens em aplicativos pode ser interpretado como uma forma de anonimato – um meio de difundir informações e ideias sem arcar com as consequências. Se as informações são comprovadamente mentirosas, ou se traduzem em crimes como calúnia e difamação, pior ainda.

Se o inquérito do Supremo desvendar uma rede clandestina de propaganda política, com financiadores e mandantes que se esforçam para ficar ocultos, vai trazer à luz algo que não condiz com a democracia.

Mas acho que vai longe demais se sair por aí distribuindo carimbos de aceitável ou inaceitável para notícias. Vai longe demais se começar a julgar o mérito de conteúdos, ainda mais de forma genérica, exigindo que blogs e perfis de redes sociais sejam silenciados.

Não vejo como punir numa ação como esta blogueiros e influenciadores que dão a cara a bater no debate público. Calúnia e difamação, creio eu, são crimes que precisam ser apurados um a um, sem condenações no atacado.

É o contrário do que faz Alexandre de Moraes ao mandar bloquear contas de bolsonaristas no Facebook, Instagram e Twitter, sob o argumento de que isso é “necessário para a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”.

Creio que boa parte do que circula nas redes sociais pró-Bolsonaro como argumentação política não passa mesmo de vomitório: palavrões, gritaria, estímulo para que medos, ódios e paranóias se manifestem a céu aberto do modo mais primitivo. Mas não quero que o Supremo chegue a essa conclusão por mim. Não creio que ele deve chegar a essa conclusão em nome de ninguém. Prefiro que haja liberdade para as ideias que odeio.

ATUALIZAÇÃO:

A decisão de Alexandre de Moraes foi divulgada. Depois de ler sua integra, não vejo razão para mudar o teor deste texto. O ministro pretende criminalizar a própria lógica das redes sociais — o fato de que por meio de compartilhamentos, hashtags e outros recursos embutidos nessas plataformas é possível aumentar exponencialmente o alcance de uma mensagem. Não faz sentido criminalizar a tecnologia. O ministro também mostra estar no rastro dos possíveis participantes ocultos dessas teias de propaganda política. Seus chefões e financiadores. Esse é o espírito da coisa.