CELEBRAÇÃO Presidente transforma em evento oficial entrega de armamentos para a Polícia Rodoviária Federal no Rio de Janeiro (Crédito:Carolina Antunes/PR)

Se depender de Jair Bolsonaro, o Brasil vai virar um País cada vez mais perigoso, imprevisível, em que a qualquer momento algum “cidadão de bem” com uma arma na cintura pode sacá-la livremente a céu aberto ou dentro de um shopping. Pela ótica governista, a ordem hoje é sair às ruas com sua pistola ou levá-la no carro e, se for o caso, diante de um conflito banal qualquer, como uma divergência ideológica, ciúmes, uma fúria incontida ou alguma questão de propriedade, alvejar ou matar o desafeto ou a mulher. A verdade é que está ficando mais fácil para o brasileiro ou brasileira morrerem baleados por um vizinho ou familiar, simplesmente porque alguém se irritou com algum assunto, agora tem uma arma e está empoderado por um presidente de caráter violento. Na cultura da bala promovida pelo governo, a defesa do interesse raivoso imediato é mais importante do que a educação, a cultura, a saúde e qualquer outra necessidade básica. Se falta comida para a população, por exemplo, sobram pistolas, revólveres, fuzis e armas de caça no mercado, como as usadas para matar o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. Para se ter uma ideia da loucura que assola o País, desde o início do mandato de Bolsonaro, mais de um milhão de novas armas legais foram parar nas mãos de civis, principalmente nas regiões Centro-Oeste e Norte, segundo levantamento feito pelos Institutos Sou da Paz e Igarapé. Clubes de tiro estão lotados e não param de receber pedidos de adesão. Fabricantes nacionais como Taurus e Imbel alcançam lucros recordes e o uso corriqueiro de equipamentos letais está sendo perigosamente naturalizado.

CINISMO Movimentos conservadores manifestam apoio a Bolsonaro e pedem “armas para o cidadão de bem” (Crédito:Eraldo Peres)

“Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar” Jair Bolsonaro, presidente da República

Há um clima belicoso na sociedade, incentivado diariamente pelo presidente, que tende a se acirrar ainda mais nos próximos meses com as eleições e que tem nas armas um ingrediente explosivo. No atual cenário aumenta a probabilidade de ataques com tiros em comícios Brasil afora, por exemplo. E o risco de uma eleição com episódios de violência – e sangue – elevou-se drasticamente em relação ao último pleito quando a estrela foi a faca e não o revólver. Bolsonaro fala, desde que chegou ao poder, que é preciso armar as pessoas para que elas não sejam escravizadas por governantes, mas está estimulando a criação de milícias e armando um bomba relógio. Disse, entre outras tolices, que é mais importante comprar fuzil do que feijão. Falou, em agosto, por exemplo, que os proprietários da categoria CAC (Colecionadores, Atiradores e Caçadores), a grande zona de sombra da farra armamentista, estavam podendo comprar o equipamento até pouco tempo de uso exclusivo militar: “O CAC que é fazendeiro compra fuzil 762. Todos tem que comprar fuzil. Povo armado jamais será escravizado. Sei que custa caro. Tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”. Bolsonaro e seus filhos, em especial o 03, Eduardo, exibem armas sempre que podem. Além de promover o uso urbano, o principal interesse do governo é armar os fazendeiros e dissuadir o movimento social, principalmente no campo, com poder de fogo. Até 2019, o proprietário rural só podia andar armado na sede e, agora, a posse está liberada em toda a extensão da propriedade.

Desde que assumiu, Bolsonaro já baixou mais de 30 normas com o objetivo de reduzir as exigências para posse e porte, aumentar a quantidade de armas e munições que um cidadão pode comprar, dificultar a identificação e o rastreio de balas e liberar a venda de armamentos antes restritos às forças de segurança pública. Medidas do governo ampliaram em quatro vezes, por exemplo, a potência das armas autorizadas no Brasil, e liberaram o acesso de civis a equipamentos militares, avançando na direção contrária à do Estatuto do Desarmamento. Várias dessas medidas foram questionadas judicialmente e deverão cair por terra, mas continuam a vigorar porque o ministro do STF Kassio Nunes Marques está segurando o julgamento de decretos que favorecem o armamentismo. “Consideramos as ações do governo, nesse caso, como inconstitucionais”, afirma o advogado Bruno Langiane, do Instituto Sou da Paz. Ele diz que Marques tem impedido que esses atos sejam derrubados, favorecendo a continuidade da venda de armas. “Há processos que estão com o magistrado há nove meses”, ressalta. Ao pedir vista, o ministro pode segurar a votação, em plenário, por tempo indeterminado e manter o aumento de cinco para dez anos no prazo de validade dos registros de armas de fogo, o que permite aos CACs estender o prazo de apresentação e renovação de documentação e enfraquece a fiscalização. Mais ainda: Bolsonaro também proporcionou o aumento, em quatro vezes, da potência do armamento na mão dos cidadãos. “Hoje os CACs podem andar pela rua com uma arma de fogo municiada e, ainda, comprar 70 armas, sendo 30 de uso restrito. Inclusive fuzis”, pontua Langiane.

Mensalmente entram em circulação cerca de 30 mil armas no Brasil. Para se ter uma ideia do crescimento do mercado, foram registradas 51,1 mil armas para caçadores desde o início do governo. É 45% mais do que o total de registros nos 16 anos anteriores. Com o armamentismo desenfreado vem o aumento da sensação de insegurança e do risco de morte violenta. Pesquisas já mostram, por exemplo, a relação direta entre a liberação de armamentos e casos de feminicídio. Em seu livro “Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência”, Langiane apresenta um estudo comparativo entre o aumento de armamento nos últimos anos e o crescimento no número de assassinatos de mulheres. Segundo o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), de 2014 a 2018, o número de registros ativos de armas com cidadãos (defesa pessoal) aumentou 23,42%, No mesmo período, destaca Langiane, os homicídios de mulheres por arma de fogo dentro da residência cresceram 19,50%, de acordo com o Atlas da Violência 2020. Nas próximas eleições, por exemplo, as chances de haver correligionários armados nos comícios dos candidatos duplicaram. Há mais armas disponíveis e mais gente disposta a usá-las. A questão da violência política está colocada desde o início do governo. No imaginário bolsonarista militares e civis podem se unir para conquistar o poder a bala.

“Hoje os CACs podem andar pela rua com uma arma municiada e ainda comprar 70 armas, sendo 30 de uso restrito” Bruno Langiane, Instituto Sou da Paz (Crédito:Divulgação)

A cientista política Michele dos Ramos, do Instituto Igarapé, avalia que o Brasil é um País violento e que o enfrentamento da violência armada deveria ser um dos principais desafios. “Mas ao invés de avançar nisso, a gente ampliou o acesso a armas e munições, inclusive a equipamentos que antes eram restritos às forças de segurança pública”, diz. “E sem que houvesse o fortalecimento dos mecanismos de controle do Estado sobre esse arsenal.” Sobre o discurso do governo de que armas nas mãos da população garantem o direito à legítima defesa, a cientista política explica que o Código Penal fala em uso moderado dos meios necessários para repelir injusta agressão – o que é muito diferente de facilitar o acesso a fuzis semiautomáticos e permitir, por exemplo, que um atirador desportivo possa comprar 60 armas e 180 mil munições por ano, equipamento suficiente para garantir o funcionamento de toda uma milícia armada. Ela destaca também que a defesa do armamento da população como via legítima de ação política vai na contramão do regime democrático — “sobretudo sob o contexto dessa tragédia que foi a morte de Bruno e Dom”, diz.

TROPA Eduardo Bolsonaro (à direita, ao fundo) em treinamento de tiro. No adesivo do carro: “Povo armado jamais será escravizado” (Crédito:Divulgação)

País perigoso

“A gente precisa lembrar que o Brasil é um País perigoso para lideranças de diferentes causas, e tem havido um estreitamento do espaço cívico no Brasil. Não podemos aceitar politicas que fortaleçam caminhos violentos para a solução dos nossos conflitos; não é possível que a gente tenha a lei do mais forte, literalmente do mais armado, sendo defendida como escolha para o nosso País. É um estrago que vai durar muito”, resume. “Essas são armas que têm uma vida útil bastante longa. O desafio já está dado. O que a gente precisa é reverter esse cenário de facilitação de acesso a essa grande quantidade de armas e munições e fortalecer as capacidades do Estado e das polícias para controlar esses arsenais e enfrentar a violência armada”, conclui Michele.

NO ALVO Instrutor orienta aluna em estande de tiro (Crédito:Eraldo Peres)

Já o diretor da Confederação Brasileira de Caça e Tiro (CBCT), Leopoldo Fiewski, diz que vivemos num estado democrático de direito, e que “a decisão de querer ou não ter uma arma de fogo é de foro pessoal de cada cidadão”. Afirma não ter dados cientificos para avaliar se o aumento do número de armas nas mãos de civis faz crescer ou não a criminalidade, mas admite que armamento de fogo pode ser utilizado para autodefesa. “Arma é um instrumento com várias funções, e, nas mãos de alguém preparado tecnicamente e psicologicamente, certamente serve para a autodefesa”, afirma. Ele descarta a associação entre o aumento do número de armas em circulação e o risco de que ocorra por aqui algo semelhante à onda de atentados verificada nos Estados Unidos. “Atentados criminosos planejados por assasinos, delinquentes, fanáticos e doentes vão acontecer de qualquer forma”, acredita. “Vão usar qualquer instrumento, seja arma, bomba caseira, produtos químicos ou mesmo veículos”. Fiewski também evita emitir opinião sobre se o Estado está conseguindo garantir o controle e a fiscalização de armas e munições em poder de civis. “Posso responder pelos atletas confederados à nossa entidade. O Exército Brasileiro faz um controle bastante rígido”, diz.

 

ARSENAL Polícia Civil do Rio de Janeiro exibe armas apreendidas (Crédito:Divulgação)

Mas é possível relacionar o incremento do armamento no Brasil com uma explosão de violência? O raciocínio é distinto ao do presidente da República e do bolsonarismo em geral. Eles garantem que para acontecer um “acidente” com arma de fogo é necessário que haja a intenção de quem impunha o instrumento. Não. Com certeza, não, são unânimes os especialistas. Há pessoas que, simplesmente, adquirem uma arma de fogo para resolver desavenças pessoais. Diversos casos de briga de trânsito, por exemplo, podem terminar em tiro, mortes. E, claro, o fato de o armamento legal ir parar em poder de criminosos, também faz a violência crescer. Outro argumento bolsonarista em alta: ter uma arma em casa, por si só, não faz crescer a violência, olhem os números. De fato, houve uma queda de 7% no número de assassinatos em 2021, último período analisado. Mas os especialistas garantem, veementemente, que a redução se deve à pandemia e não se relaciona à venda de armas de fogo. “Isso é fake news. O presidente está surfando em cima de uma mentira”, afirma Isabel Figueiredo, membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ela explica que a razão para que o governo Bolsonaro invista de forma ininterrupta na promoção do armamento à população é a influência da indústria e de movimentos pró-armas, especialmente na Câmara dos Deputados, pela liderança do deputado Marcos Do Val. “O lobby é intenso, vários deputados e candidatos trabalham explicitamente a favor da indústria”, diz. A bancada da bala historicamente é forte e o que eles querem é influenciar e mudar a legislação de acordo com seus interesses. “Isso é público: Eduardo Bolsonaro, por exemplo, atua como se fosse um propagandista da SIG Sauer, fabricante austríaca”, conta Isabel.

 

“O lobby das armas é intenso, vários deputados trabalham explicitamente a favor da indústria” Isabel Figueiredo, Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Crédito:Divulgação)

O que deve ficar claro é que a simples disponibilidade da arma de fogo acentua a violência, pois o equipamento foi inventado para esse fim: causar graves ferimentos e matar muitas pessoas ao mesmo tempo. Um dos objetivos mais evidentes dessa política é dissuadir o movimento social de agir no campo para reivindicar seus direitos. Segundo Ney Strozaque, advogado do Movimento Sem Terra (MST), a situação preocupa muito. “Os latifundiários e o agronegócio sempre reivindicaram mais armas e de maior calibre, e o governo atendeu todas as demandas”, diz. “Por conta disso, as mortes no campo aumentam. Só no ano passado, tivemos 34 assassinatos na área rural”. Pelo jeito, o que Bolsonaro quer é fomentar a formação de milícias para aumentar a tensão social em todo o País.