Dizer que tal programa de televisão “parece cinema”, normalmente denuncia certo preconceito à tela menor, em detrimento da maior. Daí a conveniência de evitar essa associação. A qualidade, afinal, pode e deve estar a serviço da TV, como tem acontecido nos Estados Unidos – e também aqui -, muitas vezes superando o êxito alcançado no cinema. Feita a ressalva, a referência à sétima arte na nova novela das 11 da Globo, Liberdade Liberdade, não se faz em função, ou não apenas, de jogar confetes sobre a direção de Vinicius Coimbra, e sim por tomadas que remetem ao modo de filmar da telona.

Caravelas tomam a tela e o foco do nosso Tiradentes no primeiro olhar do telespectador para essa história. Uma câmera então persegue Thiago Lacerda em sua caminhada, do cais ao miolo da vila, por trás dos muros à beira-mar, com escravos e outros cidadãos na contramão, a cruzar sua trilha. Desenha-se aí um plano-sequência que a TV, na urgência industrial de seu dia a dia, em geral não tem tempo suficiente de realizar. Enquanto seguimos o Alferes pelas costas, em sua busca pelo rapaz que há de lhe entregar o livro da independência dos Estados Unidos – munição para o seu sonho de liberdade da pátria -, nenhum corte.

De ângulos, imagem e reconstituição de época primorosas, a produção nos leva a um texto enxuto, obra de Mário Teixeira, capaz de traduzir o temor e a brutalidade daqueles dias, quando os habitantes desta terra eram quase bichos. Nada é limpinho. Uma tonalidade encardida contamina, ainda bem, todos os quadros, em contraste com as alinhadas fardas ostentadas pelas autoridades militares em defesa da Coroa.

Mulheres tiram piolho uma da outra no prostíbulo, onde se atracam e se rasgam para exibir o peito nu por debaixo de camisolas de tecido frágil. Letícia Sabatella arranca um dente de Mateus Solano a sangue frio e ele agradece. Ela cobra seu preço. “Tudo isso por um dente?”, questiona o paciente. “Pela sua dor. O seu dente não vale nada, pode levar”, rebate ela. Mas a pequena Joaquina, Mel Maia, apresentada como destemida desde sempre, reivindica a peça: “Eu quero o dente!”.

Autoridade chupa os dedos depois de devorar algo como um frango à passarinho, durante um interrogatório. E Solano é visto nu, em cena de tortura que ameaça punir-lhe a genitália, com promessa de delação premiada. Não demora a entregar Tiradentes ao malvado Ricardo Pereira, que no seu sotaque luso de verdade, nos faz embarcar no enredo com mais fé.

Não há frase ou cena jogada em vão. Do primeiro capítulo, sobressaem as atuações de Sabatella, no papel de uma mãe solteira quase selvagem, ciosa de seus valores, e de Lu Grimaldi, altiva na condução de dona Maria I e na ordem de matar traidores e seus herdeiros. A arte de seduzir a plateia conta com outros dois representantes impressionantes: Marco Ricca, o Mão de Luva, personagem que habita a imaginação de Mario Teixeira há muito tempo, com atuação precisa, de sotaque mineirinho que mal denuncia sua maldade num primeiro instante; e Mel Maia, a menina que faz Joaquina trancar o sorriso de menina fofa, franzir o cenho e amadurecer por pura necessidade de sobrevivência.

Dos diálogos à atuação, passando por direção, o público é surpreendido aqui e ali, como se deu na invasão dos policiais em pleno quarto de prostíbulo, pé na porta enquanto os meninos se deitavam com profissionais do sexo. Ou na fuga de Joaquina de casa, até a chegada à grade onde falou com o pai pela última vez.

Num veículo que muitas vezes busca o sucesso imediato por meio de diálogos mastigados de clichês, é prazeroso ver uma produção que não torna previsíveis as falas de seus personagens. Liberdade Liberdade tem chance de despertar na plateia algum interesse pelo nosso passado, até de modo a ajudar na reflexão sobre o tumultuado presente de um país nascido e criado sobre linhas tão tortas.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.