Quem se propõe a defender o indefensável tem de se valer, muitas vezes, de argumentos inadequados e metodologicamente não verdadeiros. Foi o que ocorreu recentemente com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que apoia a absurda tese propalada pelo presidente Jair Bolsonaro: devem ficar em distanciamento social somente os grupos de risco. Trata-se do “isolamento vertical” em meio à pandemia do coronavírus, jamais endossado pela Organização Mundial da Saúde nem por autoridades sanitárias. Roberto Campos Neto tem (porque quer) de obedecer o seu chefe. Nessa cega obediência, cometeu ele uma desonestidade intelectual e deixou alguns dados fora de contexto ao retirá-los do gráfico que consta de uma excelente obra de artigos compilados pelos economistas Richard Baldwin e Beatrice Weder di Mauro, ambos do Centro de Pesquisas de Política Econômica — trata-se de um think tank (grupo de reflexão) que congrega cerca de setecentos intelectuais, com sede em Genebra.

O livro em questão, que no espaço de um mês já se tornou um clássico, chama-se “Mitgating the Covid economic crisis”. Nele há um gráfico, e foi daí que Campos Neto pinçou o que se encaixava à sua fala, desprezando o restante: “esse é um gráfico que muita gente tem comunicado em palavras, que é a troca entre o tamanho da recessão e o achatamento da curva {de contaminação} que você quer atingir”, disse ele. “Mostra que, quando você tem um achatamento maior, você tem uma recessão maior e vice-versa”. A rigor, o que o presidente do BC quis dizer é o seguinte: quanto mais amplo o isolamento social, maior a recessão. Ou seja: devem-se encerrar o distanciamento e a quarentena, ainda que isso cause colapso de hospitais e dos sistemas de saúde público e privado, situação que levaria os médicos ao ponto que eles mais temem: o de ter de escolher a quem assistem e quem se abandona à própria sorte para morrer. A obra tem esse propósito? É claro que não, sob as óticas humanitária, racionalista e civilizatória. O livro não defende o argumento usado por Campos Neto. Não é nada disso! O gráfico é o apêndice de um organismo e tem de ser contextualizado.

Baldwin e Beatrice afirmam, categoricamente, que a recessão decorrente da mais rígida restrição à circulação é uma “medida de saúde pública necessária” e que desconsiderar a vida para salvar a economia é uma alternativa que não deve ser jamais considerada por nenhum governante. O presidente do Banco Central é neto de uma das principais sumidades do liberalismo no Brasil, o ex-ministro Roberto Campos, e também ele se diz liberal. Com um importante e triste detalhe: esquece de que o liberalismo implica política conservadora que preserva a saúde pública e o bem-estar social. Preserva o direito à vida como garantia fundamental do Estado de Direito. Alguém imaginaria os ex-primeiros-ministros britânicos Winston Leonard Spencer-Churchill e Margaret Thatcher falando o que Campos Neto falou? É impensável. Campos Neto agiu como se endossasse atualmente a inescrupulosa teoria do economista e demógrafo britânico Thomas Malthus, de que crises econômicas e de desabastecimento são causadas pela explosão populacional — a dos pobres, é claro. Os pobres de Malthus que querem comer são os pobres da Covid que querem viver.

Questão moral

Na avaliação da pesquisadora Monica de Bolle, integrante do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, a fala de Campos Neto foi “irresponsável”: “ele passa um recado equivocado e deixa no ar a mensagem para os investidores pressionarem o governo pelo fim do isolamento social”. A pesquisadora ressalta ser muito maior o risco da economia entrar em colapso devido ao infindável número de mortes do que pela contenção de circulação de pessoas. A mesma linha de raciocínio segue o economista e professor Newton Marques, da Universidade de Brasília, para quem Campos Neto força a quebra da quarentena: “mesmo que morra gente, os investidores não se importam, porque estão perdendo dinheiro”.

Dê-se voz, finalmente, a Baldwin: “a ausência de quarentena em pandemias causa mais problemas e mais danos econômicos. Se a quarentena não é implementada porque se deseja economizar dinheiro, então está-se enfrentando uma questão moral e não econômica”. Isso é professado na escola de Chicago, uma das principais instituições no ensino do liberalismo em todo o mundo. Pena que Campos Neto, que se diz liberal, não observe tal princípio. Ao se deixar conduzir por Bolsonaro e defender o “isolamento vertical”, o presidente do BC traz para a tragédia real do coronavírus a “maldição” descrita por William Shakespeare na tragédia teatral de “Rei Lear”: do louco conduzindo o cego.

Os pobres de Thomas Malthus que queriam comer são os pobres da Covid que querem viver