Em 2009, um presidiário do Centro de Detenção Provisória de Diadema, em São Paulo, foi flagrado com três gramas de maconha, algo suficiente para fazer entre três e cinco cigarros da erva, conhecidos como baseados. No ano seguinte, ele foi condenado por porte de drogas. A Defensoria Pública de São Paulo recorreu e, cinco anos depois, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal, em um movimento que levantou o debate se é crime ou não portar drogas para consumo pessoal.

A defesa contestou a punição com base na Lei de Drogas para a qual quem “adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal” não constitui caso de prisão, mas de pena educativa.

Nos autos, alega que a detenção é inconstitucional, pois fere o direito à liberdade individual. Assim, o caso se arrastou pelo sistema e resultou no que se viu no noticiário nesta semana: a descriminalização da posse de maconha pode ser aprovada no STF.

Até a sessão do tribunal realizada na quinta-feira, 17, o placar era de 4X0 a favor de liberar a droga para consumo. Caso o resultado seja favorável, sugere-se a revisão de casos de cerca de 120 mil dos 832 mil presos hoje no País – a fatia responde pelos que podem ser enquadrados como usuários.

Um longa viagem

Desde 2015, quando começou a ser analisado pela Corte, ministros passaram a deliberar que é preciso especificações para definir quem é usuário e quem é traficante.

Esse foi o ponto abordado por Alexandre de Moraes, que defendeu que a quantidade de até 60 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas deve ser caracterizada como uso pessoal.

O processo do detento só não explica o motivo pelo qual o Supremo foca na discussão da maconha e não suas variações, como canetas vaporizadoras, óleos comestíveis ou haxixe.

Portanto, o que está em jogo? Na prática, a discussão é sobre o que se vê nas ruas. “Essa lei de 2006 é antiga e fazia essa definição. Mas o que acontece hoje é que o preto e pobre quando pego com droga é traficante, mas o loirinho é usuário, pois é para consumo próprio”, resume Ílio Montanari, pesquisador do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas da Unicamp.

Discussão é o primeiro passo para política de drogas realmente pautada em direitos humanos: regulação para definir usuário e traficante (Crédito:Cris Faga/NurPhoto)

832 mil presos
Brasil tem maior população carcerária de sua história em 2023

Sancionada há 17 anos, a Lei de Drogas acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para traficantes. “O artigo 28 dessa lei prevê que se for para consumo pessoal, a punição é com advertência, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas”, explica a advogada Claudia de Lucca Mano.

Mas o que se viu foi um efeito rebote. “Mas quem é traficante e quem é usuário? Como diferenciar? É isso que está em jogo”, enfatiza a especialista.

O ponto-chave é que a interpretação fica nas mãos de policiais e dos tribunais. “A intenção era evitar a prisão de pessoas com o uso de substâncias. O que aconteceu é que a discricionariedade do agente policial e do sistema de Justiça a partir de marcadores de raça e condição social passaram a categorizar como traficante um alto conjunto de indivíduos que deveriam ter sido enquadrados como usuários”, prossegue Dudu Ribeiro, representante do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Em resumo: preconceito e injustiça social é a prática comum nas abordagens. “Ao contrário da previsão, essa lei aprisiona mais. Tanto é que anos depois já contamos com a superlotação do sistema prisional brasileiro”, diz.

Em julgamento no início de agosto, o ministro Alexandre de Moraes pontuou seu voto favorável com informações do relatório realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ):

“É possível constatar que os jovens, em especial os negros e analfabetos são considerados traficantes com quantidades bem menores de drogas (maconha ou cocaína) do que os maiores de 30 anos, brancos e portadores de curso superior.”
Ministro do STF Alexandre de Moraes

As consequências dessa realidade estão nos números. Levantamento feito por ISTOÉ, a partir de dados do Ministério da Justiça e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que a população carcerária no ano de 2023 é de 832 mil.

Em 2000, eram 232 mil, o que representa um aumento de 257%. Nesse cenário, a realidade é cruel: o déficit de vagas em prisões passa de 236 mil, ou seja, superlotação.

Esmiuçando os dados, entende-se que 28% dos detentos são usuários ou traficantes. Isso resulta em 235 mil presos, sendo que a estimativa é que metade desses detentos tem relação com porte de maconha abaixo da quantidade sugerida por Alexandre de Moraes – 60 gramas.

Numa aferição mediante esse parâmetro, significam 120 mil casos a serem revisados. “O ministro faz referência a isso no voto dele mostrando que uma parcela relevante que hoje está presa poderia ser beneficiada pela fixação da descriminalização com critérios objetivos baseados no peso da erva. Haveria um abolitio criminis (extinção do crime)”, vislumbra Cristiano Maronna, diretor da organização Justa.

“Implicaria na soltura de pessoas que hoje estão cumprindo pena por tráfico por quantidades abaixo desse limite. Haveria a possibilidade de redução da população prisional, o que é positivo tendo em vista que as prisões brasileiras são campos de concentração. Sabemos que os que comandam o tráfico ficam impunes. Quem acaba sendo atingido são os mais humildes, pobres, negros, moradores de comunidades periféricas, que são muitas vezes tratados como traficantes”, continua o também autor do livro Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade.

Mobilização da sociedade e tendência internacional

Em junho último, a Marcha da Maconha completou 15 anos com manifestação pela capital paulista sob o tema “Antiproibicionismo Por Uma Questão de Classe – Reparação Por Necessidade”, enfatizando justamente a luta de classes.

“As leis tendem a ser muito bonitas no papel. Essa de 2006 diferenciava usuário de traficante. Mas de lá para cá mais de 300 mil pessoas foram presas pela questão de drogas”, diz Diva Sativa, organizadora da Marcha São Paulo e Periféricas.

A ativista reforça que o processo de descriminalização ainda demandará um longo trabalho pela frente, tanto por autoridades quanto por sociedade. “Nenhuma biqueira perto da minha casa fechou. Adianta proibir? Continuam prendendo, mas não conseguem combater o comércio”, questiona.

Segundo Maisa Diniz, articuladora da Bancada da Cannabis, as mudanças na Corte são significativas, mas os resultados efetivos levam tempo. “Tudo isso reverbera na sociedade de forma potente, o que leva a um letramento e, principalmente, à formação da opinião pública em relação às drogas”, diz.

“Hoje a cultura racista do Brasil se sobrepõe à Justiça. O que temos hoje é um processo relevante para que consigamos efetivamente separar aquele que é usuário do traficante, entendendo que fazer uso de qualquer substância não torna ninguém criminoso ou bandido.”
Maisa Diniz, articuladora da Bancada da Cannabis

Planta fêmea da maconha: é na flor feminina que se encontra o psicoativo (Crédito:Istockphoto)

Essa perspectiva vai ao encontro da tendência mundial.

Na América Latina, o Uruguai legalizou a produção e venda de maconha em 2013.

Em Portugal, a posse não é crime, é um ato ilícito. Por lá, o porte de até 25 gramas de cannabis é considerada para consumo, assim como o cultivo de seis plantas fêmeas – mesma base citada no STF.

“É na flor feminina que encontramos as substâncias que são psicoativas, ou seja, aquelas que podem promover alguma alteração de percepção”, explica Eliana Rodrigues, coordenadora do curso O Uso Terapêutico da Cannabis Sativa L., da Universidade Federal de São Paulo.

A questão medicinal surfa no certame atual, pois um novo capítulo está para ser escrito pelas mãos do Supremo.

“Essa definição de gramas ou de tantos pés ajuda quem utiliza a planta para consumo terapêutico. A cannabis e seus benefícios estão aí, com inúmeros estudos comprovando tudo isso. Não é a cannabis que movimenta o tráfico. Essa planta é demonizada apenas por uma estrutura completamente racista”, discursa Thaina Zanholo, fundadora do Nowdays, marca e plataforma sobre cannabis.

Em Brasília, a ala conservadora permanece contrária à descriminalização. Atualmente, existem seis projetos de lei que buscam endurecer ainda mais a pena para quem compra drogas para uso pessoal. Desse grupo, três são de aliados de Jair Bolsonaro (PL).

Pacheco aponta ‘equívoco’

Rodrigo Pacheco sobre julgamento do STF: “Invasão de competência do Poder Legislativo” (Crédito:Geraldo Magela)

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), criticou o julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal.

“Se pretender legalizar ou descriminalizar, que é uma tese que pode ser sustentada por aqueles que defendem que a questão é mais de saúde pública do que uma questão judicial ou penal, o foro de definição desta realidade é o Congresso Nacional”, afirmou, sendo aplaudido em plenário.

Segundo ele, a discussão sem a criação de programas de saúde pública significa “invasão de competência do Poder Legislativo”.

“Ao se permitir ou ao se legalizar o porte para uso pessoal, de quem se irá comprar a droga? De um traficante, que pratica um crime gravíssimo equiparado a hediondo”, exemplificou.

A fala repercutiu em reações que fortaleceram a bancada conservadora e o bolsonarismo. O ponto é que depois disso, o deputado Mendonça Filho (União-PE) apresentou proposta para fazer um referendo e deixar que a população decida sobre a descriminalização.