O maestro argentino Leonardo García Alarcón, de 41 anos, está à frente dos concertos no Brasil da Cappella Mediterranea. Alarcón fundou a orquestra em 2005 em Genebra. A Cappella Mediterranea é um dos conjuntos centrais na divulgação da música barroca (1600-1750) nas últimas duas décadas.

O maestro imprimiu à orquestra a característica de dar vida passional às obras barrocas em grandes produções. A especialidade de Alarcón é a pesquisa das formas de execução do estilo barroco latino, mais exaltado e exuberante que outras vertentes. Na turnê brasileira, a orquestra vem acompanhada pelo Coro de Câmara de Namour. Os músicos executam duas obras teatrais italianas: a ópera “Orfeo” (1608), de Claudio Monteverdi, e o oratório “Il Diluvio Universale” (1682), de Michelangelo Falvetti. Theatro Municipal RJ, em 12/11; Sala São Paulo, em 13 e 14/11. É a última grande atração da temporada 2017 da Sociedade de Cultura Artística.

Nesta entrevista a ISTOÉ, concedida pelo áudio do Whattsapp, Alarcón afirma que o estilo barroco nasceu no Mediterrâneo e que o movimento da música histórica é uma moda necessária em um tempo em que os músicos contemporâneos se afastaram do público.

Maestro a Cappella Mediterranea se dedica a explorar o “barroco latino”. No que esse tipo de barroco difere de outros barrocos?

É verdade que exploramos o barroco latino. Mas a verdade é que o barroco é fundamentalmente latino. Por isso chamamos o grupo de Cappella Mediterranea porque a cultura latina é mediterrânea, ocidental e oriental. E todas as ideias estéticas  saíram dali, seja a civilização, grega, romana, depois Espanha, que conquistou humana, sem falar no que representou a Itália no Renascimento. Ou seja, esse movimento centrífugo que provocava o mar Mediterrâneo criava o barroco latino, que foi uma influência para todo o mundo.  Os músicos do norte da Europa vinham estudar o Barroco do Sul como fonte. A situação só se modificou no século 20, quando houve pela primeira vez um império anglo-saxão.  De qualquer forma, o barroco latino pode ser caracterizado como o barroco das ornamentações, dos excessos e dos maneirismos.  É um movimento que usa as formas apolíneas do renascimento de uma forma dionisíaca. Este é o barroco que exploramos.

É possível afirmar que o barroco foi o primeiro estilo musical globalizado?

O barroco foi o primeiro movimento global artístico, estético, filosófico e científico. Isso também foi levado à América. Toda a nossa civilização latinoamericana é neobarroca. Isso porque só nos tornamos independentes na época do romantismo. Seguimos aplicando as regras do barroco da Europa até então em nossa maneira de ser. O carnaval brasileiro, por exemplo, é a exacerbação do carnaval inventado em  Veneza, onde nasceram as primeiras óperas, que eram barrocas.  Assim, o barroco tem sequência nos nossos instrumentos, na harpa, nos violões e em nosso folclore. Hoje continuamos a viver o barroco na América Latina.

A “música historicamente4 informada” tem muitas visões sobre o passado, de Nikolaus Harnoncourt a Christina Pluhar or Emmanuelle Haïm.  Dentro dessa riqueza de abordagens, como você explica a sua maneira de executar a música histórica?

A admiração que tenho por Harnoncourt, Gustav Leonhardt, Frans Bruggen, Philippe Erreweghe, William Christie,  John Elliott Gardiner, Trevor Pinnock e Christopher Hogwood me ajudou a criar um método de execução e de trabalho com os músicos.  Mas tento ir além, porque a admiração que temos por um avô não quer dizer que sejamos o avô, como se diz na minha casa. É preciso ter um grande com a base, com os tratados, com os conhecimentos de contraponto, tudo isso deve resultar em algo novo porque não é possível que todo esse material se torne apenas peças de museu. O público de hoje tem de ouvir essas obras como se fossem compostas hoje. E esse aspecto é o mais importante em minha maneira de abordar uma interpretação.

Você escolheu duas obras distintas para seu programa no Brasil: “Orfeo”, de Monteverdi, e “Il Diluvio Universale”, de Michelangelo Falvetti.  A primeira é popular, mas a segunda completamente desconhecida. Por que o contraste?

“Orfeo” é conhecida, é a primeira ópera, estreada em 1607, que pode ser considerado o primeiro ano da história da música moderna. É muito mais conhecida que “Il Diluviio Universale”, composto em 1682 por Falvetti, um homem da igreja, que criou uma obra um poder enorme sobre o público atual, já que traz  melodias modernas; Mas também tem um apelo na direção do passado, pois a Sicília, de onde Falvetti era, conheceu várias invasões e teve influências as mais diversas. De alguma maneira, é uma obra que nos atrai ao passado e nos leva para o presente. É uma obra de relativa curta duração. Mas é uma música teatral na igreja pouco vista na história da música sacra com essa qualidade.

Você continua a tocar cravo e fazer pesquisas históricas? O que você aprendeu das descobertas recentes da musicologia histórica?

As descobertas mais importante foram as formas de acompanhamento, ou seja, como acompanhar um cantor com cravo, tiorba, harpa. É possível escrever um tratado sobre acompanhamento, algo que nunca foi feito.  Continuo a tocar cravo, mas gosto de acompanhar cantores e outros instrumentos na ópera. O que me interessa agora é escrever um tratado sobre o acompanhamento da ópera no século 17.

Conte sobre as produções que você dirige em grandes casas de ópera, como a nova produção de “Eliogabalo”, de Cavalli, em Amsterdã.

Em outubro, apresentamos  em Amsterdã a ópera “Eliogabalo”, de Francesco Cavalli, em coprodução com a Ópera de Paris. Essa ópera foi composta em 1667, nunca tocada na época, foi um grande sucesso., com a direção teatral de  Thomas Jolly, um diretor de teatro francês bastante conhecido hoje. Continuamos a apresentar as óperas de Francesco Cavalli, começamos com “Elena”, continuamos com “Il Giasone” e vamos fazer “Ismena”. Cavalli um compositor pelo qual eu tenho grande admiração.

Há diferenças muito grandes entre a música tocada por instrumentos convencionais e a tocada por instrumentos históricos?

Os instrumentos antigos e modernos têm a ver com a curiosidade dos músicos. A qualidade do músico, antigo ou moderno, se mede pelo talento, e há talentos em todas as áreas. É a inteligência curiosa que leva o músico a tocar um instrumento que o compositor da obra teria usado. Essa característica deve ser incentivada nos conservatórios hoje em dia.

Se comparamos a música barroca com a contemporânea, que representaria o espírito do nosso tempo, vemos que  a música antiga conquista o público, enquanto a de vanguarda dos séculos 20 e 21  sofre com o isolamento e o desprezo das plateia.  O fato de a música antiga ser acessível e a atual hermética pode explicar o sucesso da música historicamente informada?

Não sei. O século 20 foi o único momento da história em que houve uma divisão entre o músico contemporâneo e o público. Os compositores se separaram do público. A linguagem de todas as artes se rompeu em relação ao grande publico. Assim, voltar ao passado foi um movimento único. Voltar ao passado é um gesto inovador. Nunca aconteceu antes na história da música ressuscitarem tantas obras do passado. Houve casos individuais como Mozart, quando retomou “Acis e Galatea” e “Messias”, de Haendel, ou Mendelsshon com as paixões de Bach. Mas não existia um movimento como agora, que para muitos parece decadente. Acontece que voltar ao passado para tocar com instrumentos do passado se tornou quase uma necessidade, É como se os compositores voltassem a escrever, é como começar de novo. A humanidade tem necessidade disso, não entendo bem por que, mas estamos navegando no mesmo barco.

Que obras você pretende montar?

Há muitas obras que quero enfrentar, como “IL’ncoronazione di Poppea”, de Monteverdi, “Don Giovanni”, de Mozart, “Falstaff”, de Verdi, “Requiem”, de Brahms, as grandes paixões de Johann Sebastian Bach, as óperas de Giovanni Legrenzi, “Agrippina”, de Haendel. Teremos muito tempo para realizar tudo isso.