Todos os dias deveriam ser de cidadania, de celebração da consciência negra, do empoderamento feminino, da afirmação LGBTQIA+, mas Lázaro Ramos reconhece a importância simbólica de um dia para comemorar. “As pessoas estão sempre tão imersas nas suas coisas que precisam dessas datas para parar um pouco, e pensar.” Este que ficará como o ano da pandemia será também o do Black Lives Matter. Em todo o mundo houve protestos provocados pela morte de George Floyd, e no Brasil houve o caso João Pedro. Mas Lázaro não considera que as tragédias de 2020 façam deste ano, e da comemoração do 20 de novembro – dia de Zumbi dos Palmares -, uma data mais importante.

“Há quanto tempo pessoas e entidades chamam a atenção para essa verdadeira tragédia brasileira que são as chacinas de jovens negros na periferia?”, indaga Lázaro. Nesta sexta, 20, vai ao ar o especial de Manuela Dias, que ele dirigiu, na Globo. Falas Negras chega sob o signo da expectativa, mas também provocando polêmica. Roteiristas negros reclamaram que seja uma roteirista branca a assinar a peça, com depoimentos reais de pessoas que lutaram contra a escravidão, o racismo, o preconceito. O projeto nasceu de Manuela. Há tempos, Lázaro vinha se preparando para a direção. Dirigiu teatro, o programa Espelhos, do Canal Brasil. Tomou aulas particulares para entender a técnica.

“Os não negros precisam entender o lugar de escuta”, ele diz. Lázaro já virou uma das vozes mais fortes em defesa da igualdade racial e social no País. Seu foco sempre foi a abordagem de temas relevantes, mas Lázaro sempre quis fazer isso de forma acolhedora. Transformou-se na exceção que confirma a regra do racismo no Brasil da suposta cordialidade. Além de Falas Negras, ele entra numa temporada de comemoração, e reconhecimento. No começo de dezembro, será o homenageado do 30º Cine Ceará. Guarda uma lembrança forte. A primeira vez que foi a Fortaleza foi pelo teatro. Aproveitou uma folga e foi ao cinema. Mais do que simbólico, acha que foi premonitório. Aquela ida ao cinema lhe produziu uma euforia. Ceará, cinema, Lázaro. O festival deste ano será encerrado com Silêncio da Chuva, a adaptação do primeiro livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza, por Daniel Filho. Um homem é encontrado morto na direção do carro e a polícia destaca uma dupla para investigar o caso, Espinoza/Lázaro e Daia/Thalita Carauta. Lázaro e Daniel Filho possuem outra parceria inédita, o longa Medida Provisória, um sonho de oito anos que Lázaro finalmente conseguiu concluir. Ele dirige e Daniel Filho produz.

Foi há quase 20 anos. O repórter foi só ao Rio, numa visita ao set. Um certo Karim Aïnouz, que depois iria adquirir a importância que todo cinéfilo sabe, estreava na direção com Madame Satã, sobre o lendário personagem das noites da Lapa. O gay que não levava desaforo para casa e enfrentava no braço, e na navalha, quem lhe faltasse o respeito. Quem fazia o papel era Lázaro, um jovem ator baiano que já fizera um pequeno papel no ótimo A Máquina, de João Falcão. Lázaro lembra: “Foi o primeiro de muitos encontros que a gente teve, em festivais nacionais e até do exterior (‘Madame Satã’ foi a Cannes). Mesmo que, eventualmente, a gente tenha estado em desacordo, compartilhamos o amor pelo cinema”.

Já que o tema é a Consciência Negra, o repórter faz uma mea-culpa. Numa entrevista feita há tempos com Lázaro, quando ele ainda não era o astro multimídia em que se transformou, o repórter perguntou que personagem ele gostaria de representar. A resposta veio rápida – “Hamlet!”. Lázaro, o príncipe da Dinamarca? Como o preconceito está entranhado na cabeça da gente. Por que não? Bastaria levar o “ser ou não ser” para o reino de Wakanda. “Cara, juro que não me lembrava dessa história, mas a gente já se conhece há tanto tempo que, se tivesse percebido alguma coisa, o que eu ia dizer é ‘Se liga, mano’. Estamos juntos na mesma luta contra a ignorância, por um mundo melhor e mais justo, em que negros, mulheres e gays sejam plenamente reconhecidos em seus direitos. A luta pelo cinema brasileiro.”

Lázaro não fez seu Hamlet, mas fez um Espinoza preto e até um Arandir negro na transcrição da peça de Nelson Rodrigues Beijo no Asfalto, por Murilo Benício. Tem quebrado barreiras, estabelecido paradigmas.

Pandemia

A pandemia o trancou em casa com a mulher, Taís Araújo, e os filhos. “Só tive consciência da volta quando a Taís recomeçou a gravar Amor de Mãe. Todo dia ela trazia as novidades do novo normal, com todos os protocolos de segurança adotados pela Globo. Eu ainda resisto a sair. Por mais importante que seja a homenagem no Cine Ceará, não estarei lá presencialmente, até já gravei um vídeo de agradecimento que expressa tudo o que sinto, mas não vou arriscar. A pandemia não acabou.”

É curioso como justamente nesta semana esteja estreando o novo filme de Jeferson De, M-8 – Quando a Morte Socorre a Vida (mais informações abaixo). “Adoro o Jeferson e a gente vivia combinando de trabalhar junto. Ele me enviou o roteiro, me propondo o papel de protagonista. (O filme é sobre um garoto negro da periferia que vai cursar medicina e fica obcecado pelos corpos negros que disseca nas aulas de anatomia. Dar um enterro digno ao corpo negro que retalhou, referido apenas como M-8, é o mínimo que ele acha que pode fazer.) Mas depois de ler eu lhe disse que o personagem que toparia fazer seria o cadáver. ‘Mas como, nem tem falas!’, retrucava o Jeferson. No final, fiz só uma participação.”

São aquelas coisas – coincidências? O repórter conversa com Lázaro pelo telefone imediatamente depois de rever o filme de Jeferson numa cabine de imprensa. No filme, as mães de jovens negros desaparecidos – vítimas da violência policial – vão às ruas para protestar. Juan Paiva, que faz o estudante, pesquisa na rede e encontra a reportagem que fala num total de 30 mil jovens mortos, e 77% deles são negros. E Lázaro: “Demorei um tempão para fazer meu filme porque sentia que precisava me preparar. Você fala em 77% dos mortos como jovens negros. O filme tem 77 papéis, e eu sentia que precisava me preparar para dar a cada ator a atenção que o papel exigia. Não creio que essas coisas sejam meras coincidências. Esse número 77 tem de significar alguma coisa. A gente precisa prestar mais atenção nesses símbolos”.

Nos últimos anos, Lázaro tem diversificado suas atividades. Tem escrito livros – o autobiográfico Na Minha Pele e os infantis. Caderno Sem Rimas da Maria, Caderno de Rimas do João, A Velha Sentada, Sinto o Que Sinto. “A cultura é necessária. Ler é preciso, é ferramenta para a mudança.” No filme de Jeferson De, Juan Paiva é filho de Mariana Nunes, que faz uma profissional da saúde que deu duro para criar o filho sozinha. Mariana Nunes! Numa cena, ela discute com o filho. Ele eleva o tom de voz, ela grita – “Preste atenção, garoto. Tem aqui uma mulher preta falando. Ouve!”. A cena já nasceu antológica. Mariana é uma atriz excepcional. Lázaro concorda: “Cada vez mais ela adquire reconhecimento”. Mariana fez uma participação de duas semanas na novela Amor de Mãe e a personagem tomou conta dos debates. “Creio que é por isso que lutamos atualmente. Pelo reconhecimento da potência das vozes negras. Representatividade e reconhecimento. É por isso que nós, pretos deste Brasil, ainda estamos lutando.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.