Brilhante, incisivo e implacavelmente ambicioso, Henry Kissinger dominou a política externa dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. O homem que moldou como ninguém o curso moderno das relações mundiais com a China faleceu nesta quarta-feira (29) aos 100 anos.

Como Secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, Kissinger foi um mestre da estratégia cujos dons intelectuais foram reconhecidos até por seus principais críticos, que, no entanto, o culparam por menosprezar os direitos humanos e a democracia na Guerra do Vietnã e em outros cenários.

Famoso por sua fala afiada e engenhosa, sempre com um toque de seu sotaque alemão nativo, e por seus óculos grossos, Kissinger era considerado o epítome do poder internacional, uma imagem que capitalizou como consultor décadas depois de deixar o governo.

Kissinger faleceu nesta quarta-feira em sua residência em Connecticut, conforme comunicado de sua empresa de consultoria. Ele tinha 100 anos de idade.

O nome de Kissinger é comumente associado à “realpolitik”, a diplomacia baseada no poder e na praticidade.

Louvando sua perspectiva fria que sempre buscava impor os interesses americanos, seus admiradores o compararam a grandes estadistas da história.

Mas para muitos, especialmente na esquerda, Kissinger era considerado um criminoso de guerra que nunca foi julgado por seu papel, entre outros, na expansão da Guerra do Vietnã e no apoio ao golpe militar no Chile em 1973.

– Serie de eventos afortunados –

Batizado Heinz Alfred Kissinger, ele nasceu em uma família judaica em Fuerth, Alemanha, em 27 de maio de 1923. Ele fugiu do regime nazista em 1938 com seu pai, um professor, sua mãe e um irmão mais novo. A família se estabeleceu em Nova York.

“Pensei que seria contador”, disse ele ao USA Today em 1985. “Nunca pensei que lecionaria em Harvard. Não era meu sonho me tornar Secretário de Estado”.

“Não poderia ter acontecido uma série de eventos mais afortunada”.

Kissinger trabalhou em uma fábrica de pincéis de barbear enquanto cursava o ensino médio à noite.

Mais tarde, estudou contabilidade no City College de Nova York, mas foi recrutado pelo Exército em 1943 antes de poder se formar.

Seu conhecimento do alemão o levou a uma unidade de inteligência encarregada de identificar nazistas enquanto avançavam pela Europa.

No Exército, Kissinger conheceu seu primeiro mentor, também refugiado alemão, Fritz Kraemer, um cientista político que o persuadiu a transferir-se para Harvard, onde obteve seu diploma de bacharel em 1950 e um doutorado em 1954.

O primeiro livro do jovem professor, “Armas Nucleares e Política Externa” (1957), sobre como as novas armas nucleares ultradestrutivas deveriam se adaptar às necessidades da diplomacia, deu o que falar rapidamente.

– Redefinindo as relações dos EUA –

Mas as ambições de Kissinger foram além da academia, e ele assumiu empregos de consultoria no Conselho de Segurança Nacional e no Departamento de Estado durante as presidências de John F. Kennedy e Lyndon Johnson.

Esses trabalhos incluíram viagens ao Vietnã, onde os Estados Unidos estavam envolvidos na contenção dos comunistas.

Buscando servir no governo, Kissinger apoiou o governador de Nova York, Nelson Rockefeller, um republicano que buscou três vezes a presidência sem sucesso. Mas em 1968, ele passou a apoiar Nixon, que posteriormente o tornou seu conselheiro de segurança nacional.

Nixon nomeou primeiro um secretário de Estado discreto, William Rogers. Mas no final de 1973, já envolvido no escândalo de Watergate que encerrou sua presidência, Rogers renunciou e Kissinger assumiu o cargo, que ocupou até janeiro de 1977 com Ford.

Em um acordo sem precedentes que demonstrava sua imensa influência, ele foi conselheiro de segurança nacional por dois anos ao mesmo tempo que secretário de Estado.

Nixon já deixava sua marca com sua política anticomunista estridente, mas recebeu bem o método de Kissinger para encontrar áreas em que os Estados Unidos pudessem aliviar as tensões com a União Soviética.

Kissinger liderou conversações com Moscou que constituíram o esforço mais sério para controlar a corrida nuclear durante a Guerra Fria e, em 1972, as potências chegaram ao Tratado de Mísseis Antibalísticos, que impôs limites a seus arsenais.

Como parte de uma estratégia para isolar a União Soviética, ao mesmo tempo que abalava a diplomacia em torno do Vietnã, Kissinger tomou uma decisão histórica: se aproximar da China comunista.

Isolada após a destruição deixada pela Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, a China continental ficou sem contato com os Estados Unidos, que reconheciam os derrotados nacionalistas que fugiram para Taiwan.

Kissinger viajou secretamente a Pequim em 1971 e se encontrou com o primeiro-ministro Zhou Enlai, pavimentando o caminho para a visita de Nixon um ano depois, onde o presidente se encontrou com Zhou, visitou o debilitado Mao e preparou o cenário para o estabelecimento de laços diplomáticos.

– Calculista –

“Que China e Estados Unidos encontrassem uma maneira de se unir era inevitável dadas as necessidades do momento”, escreveu Kissinger quatro décadas depois em um de seus 18 livros.

“Que isso aconteceu com tanta firmeza e com tão poucos desvios é um tributo à liderança que o tornou possível”, escreveu, com a pouca modéstia que o caracterizava.

Essa abertura acabou levando a negócios ocidentais na China, que se tornou o grande adversário dos Estados Unidos a partir do fim do século XX.

Internamente, encerrar a Guerra do Vietnã era a prioridade. Nixon prometeu durante a campanha alcançar a “paz com honra” e, após assumir, o presidente e Kissinger lançaram uma política que forçava o aliado Vietnã do Sul a assumir um papel mais proeminente para que as tropas americanas pudessem se retirar.

Para fortalecer a posição antes das negociações de paz, Nixon e Kissinger autorizaram bombardeios no Laos e no Camboja entre 1969 e 1970 para prejudicar o movimento rebelde.

Os bombardeios, não autorizados pelo Congresso e mantidos em segredo do público, não impediram a infiltração rebelde, mataram milhares de civis e ajudaram no surgimento dos genocidas do Khmer Vermelho.

Kissinger viajou várias vezes a Paris, primeiro discretamente, para conversar com o negociador do Vietnã do Norte, Le Duc Tho.

Um acordo em 1983 encerrou as operações militares americanas e os dois homens receberam o Prêmio Nobel da Paz, embora apenas Kissinger o tenha aceito.

Conversas gravadas com Nixon revelaram que o calculista Kissinger esperava a queda do Vietnã do Sul após o acordo.

Em outro exemplo de “realpolitik”, Kissinger recomendou que os Estados Unidos adiassem os envios de armas a seu aliado Israel após o ataque em 1973 na Guerra do Yom Kipur, considerando que os árabes estariam em melhor posição para fazer a paz se obtivessem algumas vitórias primeiro.

– Escrutínio –

O histórico de Kissinger foi submetido a um intenso escrutínio.

Em um livro de 2001, “O Julgamento de Henry Kissinger”, o escritor Christopher Hitchens disse que ele deveria ser processado por crimes de guerra e contra a humanidade.

Documentos desclassificados mostraram o papel direto dos Estados Unidos em minar o governo do presidente socialista chileno Salvador Allende, incluindo o apoio a funcionários que mataram um general que se recusou a participar da tentativa de golpe de 1970 e o apoio à tomada de poder pelo general Augusto Pinochet em 1973.

Kissinger também foi criticado por permitir que o regime da Indonésia, então um aliado anticomunista próximo, usasse seu equipamento militar fornecido pelos Estados Unidos para invadir o Timor Leste em 1975.

Mais de 100 mil timorenses morreram durante a ocupação, que terminou em 1999, de acordo com uma estimativa de 2005 da comissão da verdade do país.

Por um tempo, sua capacidade intelectual o tornou uma espécie de “sex symbol”, e surgiram rumores sobre seus relacionamentos com estrelas de Hollywood.

Em 1974, uma década após o fim de seu primeiro casamento, Kissinger se casou com Nancy Maginnes, a alta ex-assistente de Rockefeller. Além da esposa, ele deixa dois filhos de seu primeiro casamento, David e Elizabeth.

Kissinger se manteve disponível para os republicanos quando retornaram ao poder com Ronald Reagan e raramente deixou passar oportunidades para dar seus conselhos, sempre disposto a se deslocar de seu apartamento em Manhattan para Washington quando era chamado.

“O poder é o maior dos afrodisíacos”, disse o mesmo nos anos 1970.

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