Na entrada do Palais, a caminho da premiação, o presidente George Miller e integrantes de seu júri deram entrevistas à TV do festival. Miller citou duas palavras – rigor e alegria. Quis dizer que as escolhas de seu júri foram rigorosas e que ele estava feliz com o resultado. Mads Mikkelsen, um dos jurados, acrescentou que haviam sido “belas escolhas”. Nem todas, é verdade. Os prêmios foram desfilando e nada dos favoritos dos críticos. No final, nem Elle, de Paul Verhoeven, nem Toni Erdmann, de Maren Ade – o campeão de Palma de Ouro no quadro de cotações. E a Palma de Ouro foi para… I, Daniel Blake, de Ken Loach. O anúncio deixou a sala de imprensa em choque, mas ninguém ousou vaiar. As vaias foram, principalmente, para o prêmio de direção, dividido entre o romeno Cristian Mungiu, de Bacalaureat, e o francês Olivier Assayas, por Personal Shopper.

Assayas é um grande diretor, mas esse, apesar da elegância dos movimentos de câmera, é seu filme que os críticos amam odiar. O caso do romeno talvez seja mais complicado. Bacalaureat é um ótimo filme, mas se era para premiar a direção, a do outro romeno, Cristi Puiu, de Sieranevada, era mais ousada, mais radical, mais tudo. Nem Elle nem Toni Erdmann. Nem Paterson, o maravilhoso filme de Jim Jarmusch, nem Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. A exclusão do filme brasileiro foi injusta. O leitor pode até chiar, mas a reclamação não é patriotada. Aquarius teve ótimas críticas que autorizavam esperar pelo melhor. E, num ano de grandes criações femininas, Sonia Braga era melhor atriz até para o crítico do The Los Angeles Times.

O leitor deve se lembrar – no penúltimo dia do festival, chegou The Salesman/Le Client, do iraniano Asghar Farhadi, que deixou o repórter siderado. The Salesman também impressionou o júri, que lhe deu dois prêmios – melhor ator, para o extraordinário Shahab Hosseini, e melhor roteiro, para o próprio diretor. A melhor atriz foi a filipina Jaclin José, de Ma’ Rosa, de Brillante Mendoza. Na coletiva do júri, jornalistas do mundo todo tentaram desautorizar o prêmio. Um chegou a dizer que Jaclin é mera coadjuvante. Dois jurados, o diretor Arnaud Desplechin e o ator Donald Sutherland, reagiram como leões. Desplechin disse: “She broke my heart”, ela despedaçou meu coração. E Sutherland: “Não é porque os críticos dizem uma coisa que ela se torna verdadeira. Jaclin não é coadjuvante. É a protagonista da história. E uma grande atriz”.

O prêmio do júri foi para American Honey, de Andrea Arnold, e o Grand Prix para o quebecois Xavier Dolan, por Juste la Fin du Monde, adaptado da peça de Jean-Luc Lagarce.

O Grand Prix é o segundo prêmio em importância, após a Palma. Dolan chorou – já havia chorado, sabe-se lá por quê, quando o ator iraniano recebeu seu prêmio. Talvez porque Shahab Hosseini tenha dedicado o troféu ao pai, que morreu, ou ao povo iraniano. Juste la Fin du Monde é um filme sobre família, e morte. Nada autoriza crer que as lágrimas de Dolan tenham sido de crocodilo. Ele parecia genuinamente emocionado.

Mas Dolan é outro que a crítica ama odiar. Jovem, bonito. Talentoso – 27 anos e seis filmes, todos selecionados para Cannes, e mais da metade premiados. Talvez o moleque realmente se ache, mas como não? Há dois anos, aqui mesmo em Cannes, outro júri lhe outorgou seu prêmio especial – dividido com ninguém menos que Jean-Luc Godard, o gênio, o mito, por Adeus à Linguagem. Mesmo correndo o risco de desagradar, é preciso dizer – Dolan também é uma espécie de gênio, por que não?

Kleber Mendonça, Pedro Almodóvar, Jim Jarmusch, Paul Verhoeven. Se os melhores filmes do festival não receberam nada, então o júri foi criminoso? Não – foi corajoso. Porque não é tarefa fácil premiar Ken Loach. Para muita gente, o velho militante (comunista?) é um anacronismo no mundo dito moderno. Mas a verdade é que I, Daniel Blake é um de seus melhores filmes. Dan é um trabalhador colhido num impasse. Com problemas de coração, o médico do sistema de saúde o impede de voltar ao trabalho, mas a assistente social diz que ele não tem nada. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Digamos que a vitória de Ken Loach realmente tenha sido uma surpresa. Na sala de imprensa, produziu um silêncio mortal. Ninguém se atreveu a vaiar. Porque I, Daniel Blake pode não ser o filme de nossos sonhos, mas é emocionante, é forte e íntegro.

Resistência

No limite, a ética foi o que esteve em discussão nos 12 dias do 69º Festival de Cannes. E I, Daniel Blake é um filme profundamente ético. Loach e seu discurso esquerdista. Antiglobalização, anticapitalismo. De novo Cannes colocou no pódio o mais jovem diretor (Dolan) e o mais velho (Loach, 80 anos). Paula Gaitán, madrinha do novo cinema do Brasil, encontrou-se com o repórter e, comentando a premiação, foi incisiva. “O filme é emocionante, obra de um grande cineasta.” No seu agradecimento, Loach disse que Cannes é um espaço de resistência, e por isso mesmo tem de continuar existindo. Longa vida a Cannes! E, depois, como completou o diretor – a Palma para seu filme é a prova de que um outro mundo é possível.

VENCEDORES

Palma de Ouro

I, Daniel Blake, de Ken Loach

Grande Prêmio

It’s Only the End of the World,

de Xavier Dolan

Direção

Olivier Assayas, por

Personal Shopper

Cristian Mungiu, por

Graduation

Ator

Shahab Hosseini, por The Salesman, de Ashgar Farhadi

Atriz

Jaclyn Jose, por Ma’ Rosa,

de Brillante Mendoza

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.