Kathlen, de uma hora para outra você entrou na minha vida. Desde que você concordasse, quando viva, é claro, eu gostaria de ter sido teu amigo. Mas nos tornamos amigos só agora, eu vivo, você assassinada. É pena, é triste, é totalmente condenável o que fizeram com você. Kathlen, você vai ser minha amiga morta. Tudo bem?

Sabe, Kathlen, ainda há sangue de moradores da Favela do Jacarezinho nas mãos de policiais do Rio de Janeiro, e talvez outros policiais, em nova ação desastrada e desastrosa, tenham matado você. Já nem importa se é bala deles ou bala de traficante, o que conta, mesmo, é que a ação da polícia não poderia ter-se dado da forma como se deu, periclitando vidas de quem não tinha nada a ver com nada. E há uma coisa que eu não entendo: o Supremo Tribunal Federal determinou toda cautela em operações policiais durante a pandemia e ordenou que só fossem realizadas em situações inadiáveis. A polícia do Rio de Janeiro não está cumprindo a determinação. Você é a prova desse descumprimento por parte de alguns agentes policiais – e, lembremos, são eles agentes públicos. Houve tiroteio? Não sei. Só sei que bala avoando te pegou.

Leio nos jornais, Kathlen, que tua mãe, a sra. Jackeline, hoje emocionalmente arrasada, te dizia: “a gente é negro, mora em favela, não pode dar mole. Temos que ser alguma coisa”. Ela está certa, e você tornou-se designer de interiores. Trabalhava, vivia alegre os seus 24 anos de idade. Casou. Engravidou. Que tristeza, amiga, teu feto de quatro meses ter partido com você, assassinado pela mesma bala perdida. Pois é, amiga minha, eu acho uma afronta essa expressão bala perdida. Não existe isso. O que há é um Estado perdido: omisso, inoperante, incompetente que nada faz para colocar fim a essa guerra no Rio de Janeiro. Inocentes como você e teu feto pagam com a vida a mandriice de autoridades.

Tirante a tua família, Kathlen, teus amigos, amigas, vizinhos e ativistas do Complexo de Lins, onde você morava, quem de fato se importa com a tua morte? Claro, também se revoltam entidades de direitos humanos, boa parte da mídia, artistas, intelectuais e estudantes. A OAB veio a público falar que adulteraram o local em que você foi alcançada pela bala perdida. E eu, amiga, também me importo muito com tua morte. Mas vamos deixar claro: as autoridades que podem interromper o ciclo de tantas grávidas baleadas no Rio de Janeiro (oito e cinco anos) não se importam, não. Nada fazem. E acho ridículas as investigações, nunca dão em nada, pergunta para a nossa querida Marielle, até hoje não descobriram quem mandou executá-la. E, bala perdida ou não, alguns policiais vão atirando cada vez mais. Claro que eles têm de combater traficantes, mas é necessário fazê-lo sem colocar a vida de inocentes em risco, sem atirar a esmo. Mas alguns agentes querem matar traficantes de qualquer forma para abrir mais espaço aos milicianos. Se morrer inocente, morreu.

As chamadas autoridades estão no alto da pirâmide social, nós nos amontoamos cá na base. O que a gente precisa aprender é que, chacoalhando a base, os inoperantes e incompetentes e cruéis que estão lá no topo despencam.

Há também aqueles vampiros sociais que brindam com taças de sangue os assassinatos de pretas e pretos. Precisam ser presos.

É preciso colocar fim em tudo isso. Por favor, Kathlen, ajuda a gente! Ajuda a gente na luta pela igualdade racial e pelo fim dos preconceitos.

E se alguém perguntar porque ficamos amigos, vou responder, adaptando Montaigne e me remetendo a Chico Buarque: “porque era ela, porque era eu”.