Durante 43 anos, a Justiça brasileira se omitiu na responsabilização dos militares que participaram do bárbaro assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, nas dependências do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), em São Paulo. Militares torturaram o jornalista, que na época trabalhava na TV Cultura, até a morte, mas depois forjaram a cena do crime alegando que ele se enforcou na cela, apesar de estar com os pés no chão. Na última quarta-feira 4, porém,a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fez o que nenhum juiz brasileiro teve coragem de reconhecer: que a ditadura cometeu crime contra a humanidade ao executar o jornalista. Agora, o governo brasileiro terá um ano para apresentar um relatório mostrando o que está fazendo para reabrir o caso e punir os responsáveis pelo crime. Além disso, a família do jornalista receberá uma indenização de US$ 240 mil (R$ 940 mil) por danos morais e materiais sofridos no episódio, que marcou profundamente a vida de sua mulher Clarice (na época com 34 anos) e seus dois filhos (9 e 7 anos).

Violento assassinato

Ao comentar a decisão em sua página no Facebook, Ivo Herzog, filho do jornalista assassinado, disse: “Há 43 anos eu perdi meu pai. Assassinado violentamente. Uma pessoa de paz, que gostava de pescar, fotografar a família, de astronomia. Eu tinha 9 anos, meu irmão 7 e minha mãe 34. Ele morreu por desejar que todos tivessem o direito à livre manifestação em um Estado democrático”, disse Ivo. Para ele, no entanto, a luta não foi em vão. “Foram 43 anos de luta para que provássemos que ele foi barbaramente torturado e assassinado. Não encontramos esta resposta no país que meu pai adotou como pátria. Tivemos que buscar nas Cortes Internacionais. Finalmente, hoje, saiu a sentença tão aguardada”, escreveu Ivo.

“Meu pai foi assassinado violentamente. Uma pessoa de paz, que gostava de pescar, fotografar a família e de astronomia” Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog

Na sentença, a CIDH considerou que o Estado brasileiro foi responsável pela “falta de investigação, de julgamento e de punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato do jornalista”. Diz ainda que o governo não pode alegar que o crime já está prescrito ou que a Lei da Anistia tenha afastado a possibilidade de punição aos criminosos “para escusar-se no seu dever de investigar e punir os responsáveis”. A Lei da Anistia, assinada em 1979, foi reafirmada pelo STF em 2010, mas crimes de tortura não prescrevem. A decisão da CIDH determina que o Brasil reabra as investigações e o processo penal para que os criminosos sejam responsabilizados “em atenção ao caráter de crime contra a humanidade desses fatos e às respectivas conseqüências jurídicas no Direito Internacional”.

UMA DOR INFINITA Ivo Herzog esperou 43 anos para que a Justiça condenasse o Estado brasileiro pela morte do pai (Crédito:Divulgação)

No dia do crime, 25 de outubro de 1975, Herzog foi brutalmente torturado e morreu no Doi-Codi, mas os militares montaram a versão de que ele havia se suicidado. Com uma tira de pano amarrada ao seu pescoço na grade da cela, o jornalista foi fotografado por um perito do Instituto Médico Legal forjando o suicídio. Mas Vlado, como era conhecido, estava apoiado com os pés no chão, comprovando que ele não poderia ter tirado a própria vida. A farsa foi desmontada por uma ação cível na Justiça de São Paulo, em 1978, mas os militares nunca foram punidos. Em 1992, investigações na Justiça foram arquivadas com base na Lei da Anistia. Em 2009, o Ministério Público Federal tentou reabrir o caso, mas a juíza Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Criminal de São Paulo, julgou que estava prescrito. Em 2012, contudo, a Justiça de São Paulo determinou a retificação do atestado de óbito do jornalista, mudando a causa da morte, de “asfixia mecânica” para “morte que decorreu de lesões e maus-tratos”. No momento em que as extremas esquerda e direita voltam a se assanhar no Brasil, a notícia da condenação do Estado brasileiro vem em boa hora para colocar as coisas nos seus respectivos lugares.