O portão ao lado de um muro preto com três frases que dizem “feito é melhor que perfeito”, “pense ao contrário” e “menos carão, mais coração” tem ao redor uma vizinhança de casas adormecidas apesar de estarem a poucos quarteirões do “círculo de fogo” da Vila Madalena.

Muito perto e muito longe do fervor de uma boemia mais intensa e juvenil, sua entrada é silenciosa, quase lúgubre, e prestes a revelar um tanto de improbabilidades. Afinal, o que acontece pelas próximas horas depois que se passa pela porta de vidro da entrada pode ser tudo o que um punhado de boas canções é capaz de fazer – do reconforto ao êxtase -, mas nada que alguém esperaria viver ali, em uma madrugada de domingo para segunda-feira.

Não deve haver só uma razão que explique o que tem feito do Julinho Clube ser uma espécie de resistência, e residência, de sonhos quase perdidos pelas rodas de música de São Paulo.

Por 25 anos, Julinho conduz seu salão sem ambições de empresário – que ele diz não ser – e com paixões invioláveis de um músico da noite. Seu salão de 120 metros quadrados de teto baixo e luz preguiçosa é refrescado com ventiladores antigos e decorado com um violão, um banjo, imagens de santos, espelhos e retratos de artistas. “Eu quis conservar o que vivo na noite há 45 anos. As pessoas sentem que entraram em um túnel do tempo”, diz.

Mesmo no fio das falências de outras épocas, Julinho repassava 100% do couvert aos músicos, não se agarrava aos sons gritados de lucro certo e seguia leal a três ou quatro regras que o coloca a 20 mil quilômetros distante dos quarteirões ao lado: quem senta em sua roda para cantar e tocar sabe o que deve fazer. E é aí que sua história se cruza com a história do Sarau Musical Lua Nova.

Apesar de abrir sempre, exceto às segundas, e de ter noites tão especiais quanto, é aos domingos que a casa-bar, que os negros norte-americanos chamariam de juke joint no sudoeste dos Estados Unidos, fica um pouco mais mágica.

A partir das 22h, a mesa oval colocada em frente à pista e ao lado dos clientes – ou seja, todos no mesmo nível e quase misturados – é ocupada por músicos orientados pelo violonista das 5 mil canções, Paulinho Grassmann, um dos criadores do Lua Nova há 16 anos ao lado do percussionista Bré Rosário.

Com o baterista Ivan Alves e o baixista Rodrigo de Oliveira, além de outros instrumentistas convidados, Paulinho controla o fluxo das “canjas” de uma gente muito boa de voz e de repertório que cria uma espécie de efeito emocional em looping, fazendo a noite renascer a cada punhado de canções.

A abertura é suave e pode ser feita com antigas devoções por Zé Caetano ou pelo núcleo de cantoras que está no Lua desde o início, quando tudo começou no Bar do Toninho. Mara Tapxure, Vânia Passos e Eliane “Lilica” Utrera sempre gostaram de trabalhar mais nas sutilezas de um repertório que segure a noite pela alma, sem apoiá-la em convites de bailão.

“Tentamos manter isso, mas a roda acabou sendo descaracterizada. As pessoas iam para ouvir, agora querem dançar”, dizem Mara e Lilica. Então, é nesta sessão, a partir das 22h, que ainda se pode ouvir Rio Amazonas, de Dori Caymmi; Coco do Coco, de Guinga e Aldir Blanc; Água de Lua, de Djavan; ou Achou, de Dante Ozzetti e Luis Tatit. Nada, e essa é a graça do negócio, que se cante em outras rodas.

NOITE SEM FIM. Mas o tempo passa à base de doses de cachaça com pimenta ou gengibre servidas entre porções de carne louca e a noite, de fato, se transforma. É quando podem chegar músicos que migram para o Lua Nova depois de terminarem seus shows. O violonista Yamandú Costa lembra de quando conheceu a roda: “O nível dos caras era alto”, diz.

“Eu estava um pouco alterado, mas sabia que tinha de manter uma excelência ali.” O guitarrista Toninho Horta também não esquece de sua “noite no Lua”. “Eu nunca vi aquilo em lugar algum, com as pessoas se revezando em volta de uma mesa, naquele astral, se entreolhando para tocarem daquele jeito.” Grassmann, que mantém o projeto vivo no Julinho há seis anos depois de passar com ele por mais de 15 bares, fala de sua grande emoção. “Foi quando tivemos (o uruguaio) Jorge Drexler cantando Al Otro Lado Del Rio. Nunca me esqueci.”

De qualquer forma, as estrelas ali são outras e, por volta das 22h30, o cantor Cacá Lima pode levar todos em levitação até o Clube da Esquina para, depois, a cantora Karine Telles puxá-los pelos pés e arrastá-los ao xote de A Violeira ou no terreiro de Seu Balancê. Com sorte, chegam ainda Kitu Yang, Thiago K, Patrícia Bastos, Renato Braz e o próprio Julinho para fazer o fim da noite virar começo às 3h da manhã de uma segunda-feira.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.