O vídeo tem circulado pela internet, com milhares de visualizações. Os três últimos minutos de Zubin Mehta à frente da Filarmônica de Israel. É a despedida de um grande da regência. Aos 83 anos, Mehta resolveu afastar-se dos palcos. E não foi o único. Semanas antes, o maestro holandês Bernard Haitink, de 90 anos, fez o mesmo. Ovacionado pelo público do Concertgebouw, de Amsterdã, anunciou sua aposentadoria, depois de uma breve e celebrada turnê de despedida.

Mehta possui uma relação antiga com a cena musical brasileira. Ao longo das décadas, esteve no País diversas vezes com a Filarmônica de Israel e outros grupos que dirigiu, em concertos sempre concorridos. E, nos últimos anos, tornou-se patrono do Instituto Baccarelli, projeto de formação musical e inclusão social localizado na comunidade de Heliópolis, na zona sul de São Paulo.

“Na primeira visita que ele nos fez, ainda não tínhamos nossa sede e trabalhávamos em uma antiga fábrica de sucos na Estrada das Lágrimas”, conta o maestro Edilson Ventureli, um dos diretores do instituto. “Naquele primeiro dia, ele já participou de surpresa do ensaio da Sinfônica Heliópolis. E, a partir de então, sempre no]s visitou, regeu a orquestra no Municipal para arrecadar fundos. Uma vez, propusemos a ele que regesse um arranjo de Aquarela do Brasil e Tico-Tico no Fubá. E ele veio nos perguntar como devia reger a peça. Ali ficou um grande ensinamento para mim e para os músicos: quem é algo não precisa demonstrar ser”, lembra.

“Tanto o Haitink quanto o Mehta impressionam pela base técnica que possuem”, diz o maestro brasileiro Carlos Prazeres, atualmente à frente da Orquestra Sinfônica da Bahia. “Eles têm uma regência muito clara, apolínea”, explica. “Lembro de minhas aulas de regência com o maestro Silvio Barbato e ele sempre nos dizia: vão ver o Zubin reger, vão ver o Zubin reger. Porque a clareza da técnica era incrível.”

A maestrina Simone Menezes, hoje radicada na França, onde criou recentemente o Ensemble K, concorda. “São dois maestros clássicos, que fazem tudo com qualidade, mas com um olhar mais tradicional para o som, para o gesto, uma característica vienense, preocupada mais com a uniformidade sonora do que com o desejo de criar uma interpretação nova. As gravações dos dois são, por causa disso, referências para qualquer decisão interpretativa.”

“Uma grande influência para mim é o discurso musical transparente e orgânico do Haitink nas sinfonias de Brahms, por exemplo. Já Mehta é referência absoluta de conexão de uma técnica elegante e perfeita transmissão de ideias musicais maduras”, completa o maestro brasileiro Tobias Volkmann, que já foi diretor de conjuntos como a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Com as despedidas de Mehta e Haitink, restam em atividade poucos representantes de uma geração de ouro da regência. É a geração de Claudio Abbado, Nikolaus Harnoncourt, Pierre Boulez, Kurt Masur e tantos outros, mortos nos últimos anos, e da qual ainda são símbolos nomes como Riccardo Muti, de 78 anos, diretor da Orquestra Sinfônica de Chicago, e Daniel Barenboim, de 76 anos, músico que não dá indícios de se aposentar, comandando a Ópera Estatal de Berlim e a Orquestra do Divã Ocidente Oriente, com as quais viaja frequentemente pelo mundo.

“Foi uma geração que teve todo um caderno da historiografia discográfica para preencher”, lembra Menezes. “Eles nos legaram uma tradição que, de certa forma, é um peso, pois leva à necessidade de se buscar sempre algo novo”, completa. Volkmann segue na mesma linha. “Essa geração está muito ligada a um período de ouro na indústria fonográfica, a um período de mudança no acesso à música, principalmente para quem não cresceu indo às salas de concertos europeias. Antes do surgimento da internet e da facilidade de acesso a inúmeras gravações de todos os repertório, essa geração já estava estabelecida como a referência para nós.”

A diferença entre gerações não se limita no entanto ao ocaso do CD. Menezes relembra também que, ao longo do século 20, o tamanho da indústria cultural levava à criação de grandes mitos, que hoje já não surgem com tanta frequência. E Volkmann ressalta outra questão estrutural. “Eles puderam fazer um longo trabalho de excelência com uma mesma orquestra. Longas trajetórias como a de Haitink com o Concertgebouw ou a de Mehta com a Filarmônica de Israel não parecem mais ser possíveis nos tempos atuais. Ainda assim, devem seguir como a referência da qualidade e da identidade de uma sonoridade que podemos construir, da pertinência de um trabalho de longo prazo feito com parâmetros altos, constante exigência e autocrítica, e também da importância da identificação de uma orquestra ou instituição cultural dessa magnitude com a sociedade em que está inserida.”

Para o maestro, Haitink em Amsterdã e Mehta em cidades como Viena iniciaram suas carreiras em sociedades que “viviam um grande momento econômico e de valorização e investimentos na arte após o pior período vivido pela Europa em sua História”. “Nós estamos em um contexto completamente diferente, onde as instituições estão em crise ou ameaçadas e precisamos agir para repensar as estratégias de inserção de uma orquestra na sociedade e para defender a pertinência da cultura em uma sociedade que quer se considerar desenvolvida”, coloca Volkmann.

Prazeres chama atenção, por sua vez, ao fato que esse processo de reflexão inclui uma discussão a respeito do próprio sentido do trabalho de um regente. “Vejo na minha geração um novo olhar. É impossível hoje ser um maestro distante ou reservado como é o Haitink. O nosso tempo pede uma relação diferente com a orquestra, uma relação de entrega pouco baseada na hierarquia e mais pensada em termos da colaboração”, explica. “O papel do regente é fundamental, mas não é maior ou menor que o dos músicos da orquestra. E esse espírito colaborativo é algo realmente novo.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.