Um curador brasileiro adota como sobrenome uma expressão russa – Dushá, ou ‘alma’ – por afinidade com a literatura de Gogol. Isso não é comum. Mas o paraense Germano Dushá, nascido na serra dos Carajás há 34 anos, tampouco é comum: gosta de usar uma ‘rubakha’, a camisa típica sem gola dos russos, e diz ter aprendido a escrever lendo Dostoievski, Gogol e Tolstoi. Formou-se em Direito, mas também não seguiu em frente como advogado. Tinha uma inexplicável atração pela arte – em sua família isso era incomum – e ocupa hoje um lugar especial como curador independente e gestor cultural.

Seu nome cresce entre os frequentadores de galerias, como comprova a mais recente exposição organizada por ele (e mais dois curadores, Ariana Nuala e Rafael RG), Contra-Flecha – Arqueia Mas não Quebra, que atraiu nada menos que 400 pessoas em sua abertura na Galeria Almeida & Dale, em janeiro. É um recorde da galeria e aponta novos horizontes para Dushá, que já transita no mercado internacional.

No ano passado, por exemplo, ele assinou a curadoria da mostra Calor Universal, na conceituada galeria norte-americana Pace. Na sexta, 11, em associação com outra galeria internacional, a Mendes Wood, ele inaugurou a coletiva Esfíngico Frontal. A exposição acontece na sede paulistana da galeria e tem como estrela a artista húngara Zsófia Keresztes, que representou seu país na última Bienal de Veneza.

RENOVADOR

O que faz de Germano Dushá um nome hoje disputado pelas galerias é sua formação e ousadia. Autodidata, estudou a obra de historiadores e críticos como Giulio Carlo Argan e Mário Pedrosa. Dushá, além de erudito, é um sopro renovador no mercado de arte brasileiro, fazendo dialogar artistas consagrados com novos talentos na hora de montar uma exposição. Em menos de dez anos de atividade como curador, Dushá provou que artistas jovens com propostas novas podem, sim, ser um negócio tão bom para as galerias como os veteranos.

A exposição Contra-Flecha aposta nesse novo modelo de coletiva, reunindo artistas convocados por edital (600 se candidataram) ao lado de convidados e nomes de peso como Volpi, Mira Schendel, Oiticica e outros que integram o acervo da galeria. Na segunda exposição que organiza para a Almeida & Dale (a primeira foi Terra e Temperatura, em 2021), Dushá viu na mostra uma oportunidade de trazer para São Paulo artistas de outros Estados, gente nova de Pernambuco, Amazonas, Bahia, Maranhão e Santa Catarina.

A mostra, observa Dushá, não é “generalista”, mas tem um tema, uma proposta curatorial. Na engenharia civil, o termo “contraflecha” refere-se a diferentes procedimentos construtivos que envolvem vigas e escoras para garantir a sustentação estrutural da laje. Assim, Dushá usa obras de Mira Schendel, Hélio Oiticica e Volpi como vetores para os jovens, apontando novas perspectivas para a arte brasileira.

FLEXÍVEL

O arco temporal da mostra da Almeida & Dale cobre desde o advento da abstração no Brasil, por volta dos anos 1950, até a produção artística contemporânea, o que envolve várias técnicas e linguagens, da pintura ao vídeo, passando pelo artesanato – e um exemplo representativo é o conjunto de “caretas de cazumba” criado por Zimar, de Cutia, povoado de Matinha, Maranhão. A formação de Zimar é toda decorrente da prática como brincante da cazumba.

O que caracteriza a curadoria de Dushá, aliás, é esse livre trânsito entre o popular e o erudito. “Aparentemente, é difícil estabelecer uma conexão entre uma obra de Mira e as peças em cerâmica de Loren Minzú, jovem artista de São Gonçalo, de 24 anos, mas isso nos conduz a um novo modo de olhar”, justifica Dushá.

Outra associação curiosa é a do livro recortado do histórico mineiro Raymundo Collares (1944-1986) com as “roupas’ de folhas da série Amoré (2023), do artista visual e estilista Labo, de Belém do Pará. A mostra tem ainda um insólito barco com duas proas do baiano Allan da Silva, de 29 anos.

INQUIETO

A intuição de Dushá raras vezes falha. Ousado, ele fez de sua vida o próprio campo de experimentação: largou uma promissora carreira de advogado para se dedicar à arte, errando do Pará ao Maranhão, passando pelo Espírito Santo, Campinas e Rio até chegar a São Paulo com menos de 18 anos.

“Queria ser escritor, mas achava pouco a escrita, o que me levou a um curso de curadoria na PUC, depois de testar minha capacidade como gestor de espaços independentes em que fazia de tudo, da faxina à organização de mostras”, conta Dushá, que estreou como curador em 2014. “Gosto de testar minha capacidade de reinvenção formal e percebi que as galerias, no Brasil, são mais abertas a um caminho experimental que os museus.”

De fato, o exemplo de Dushá frutifica. Quase todas as galerias de São Paulo já contam com um curador para orientar a escolha de novos artistas e organizar exposições. Algumas com superastros, que já foram curadores de bienais internacionais. Dushá ainda chega lá.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.