Historiador e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) José Murilo de Carvalho, de 83 anos, morreu na madrugada deste domingo, 13, após internação pela covid-19. Ele foi fundamental na descrição do papel das elites na formação do Império e da República e sobre a relação dos militares com o poder. Seu trabalho ajuda a entender como esses processos históricos influenciam o Brasil até os dias de hoje.

Na primeira tentativa de entrar na universidade, Carvalho foi reprovado no vestibular para Economia por não resolver uma equação de 2º grau. Daí veio a guinada que marcaria as Ciências Humanas no Brasil: passou em 2º lugar para o curso de Sociologia Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde se formou. Mais tarde, ganhou o título de mestre em Ciência Política pela Universidade de Stanford (EUA), onde defendeu tese sobre o Império Brasileiro.

Foi professor e pesquisador visitante em universidades de vários países, como Oxford (Reino Unido), Leiden (Holanda), Stanford e Princeton (Estados Unidos) e na Fundação Ortega y Gasset (Espanha). Foi professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Eleito imortal da ABL em 2004, sucedeu a escritora Rachel de Queiroz e ocupava a cadeira nº 5. Autor de 19 livros, entre suas obras mais famosas estão A cidadania no Brasil e Os bestializados.

Destruição

Na sua última entrevista para o Estadão, em 2022, Carvalho analisou o bicentenário da Independência do Brasil. Segundo ele, o País chegou à data sem um projeto de nação e longe da grandeza anunciada em 1500 pela natureza exuberante e sonhada no século 19. “A grandeza não passou de sonhos”, destacou o historiador na época. “Destruímos nosso paraíso terrestre. Nossos ares, águas, praias estão poluídas, nossas matas, destruídas, nossas terras, em perigo de desertificação, a Amazônia, ameaçada pelo desmatamento e pela mineração predatória. A grande população indígena da época da chegada dos colonizadores foi quase toda extinta. Grande parte da população ainda sofre as marcas da escravidão”, continuou o pesquisador.

O pioneirismo de José Murilo é sempre lembrado por outros acadêmicos. “O estudo sobre a política no Império que revelou quem era e o que fazia a elite política no Império. Também fez trabalho fantástico sobre o início da República, que ele emenda com a questão militar. Foi um pioneiro nos assuntos militares”, afirma Maria Celina Soares D’Araujo, pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Ela, que preside Associação Brasileira de Estudos de Defesa, também destaca a contribuição de Carvalho para os estudos sobre cidadania.

“Desde minha graduação nos anos 1970, os textos dele já eram referência”, conta João Roberto Martins Filho, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ele cita, por exemplo, como Carvalho avançou ao propor que a unidade brasileira se devia também ao fato de a elite se formar em Coimbra. Depois, esses laços se mantinham. Sobre o entendimento dos militares, diz Martins Filho, a inovação “não foi a análise de classe, mas de uma organização que por certos traços se definia na formação do Exército.”

Para Celso Castro, diretor da Escola de Ciências Sociais (FGV CPDOC), é uma “perda grande” para a academia. “Tem estudos importantes sobre elite política, cidadania e Império. Publicou dois artigos importantes sobre Forças Armadas. Uma sobre a primeira República e depois no período de 1930 a 1945. Em 2005, tive o prazer de juntar esses textos no livro Forças Armadas e Política no Brasil”, diz ele, presidente do Comitê RC01 – Armed Forces and Conflict Resolution da International Sociological Association.

O livro foi reeditado e ampliado em 2019, após Jair Bolsonaro se tornar presidente. Nele, Carvalho aponta um “círculo vicioso” na relação entre militares e civis. “As Forças Armadas intervêm em nome da garantia da estabilidade do sistema político; as intervenções, por sua vez, dificultam a consolidação das práticas democráticas”, escreveu. “Estamos presos nessa armadilha e não conseguiremos escapar dela se não construirmos uma economia forte, uma democracia includente e uma República efetiva.”

Fazenda

Nascido em Andrelândia (MG), a cerca de 150 quilômetros de Juiz de Fora, Carvalho era de uma família de dez irmãos e cresceu em uma fazenda onde não havia luz nem água encanada. Lá, relatava, tiravam leite de vaca e andavam descalços – só usavam sapatos quando iam à cidade. “Todo sábado havia uma sessão para tirar bicho de pé”, disse, em entrevista à revista Ciência Hoje, em 2013.

Foi alfabetizado pelo pai, dentista, e depois estudou no seminário, o que contribuiu para o seu talento nas humanidades. Estava na graduação, em Belo Horizonte, quando o Brasil sofreu o golpe militar de 1964. Militante da Ação Popular, de esquerda, ele relatou ter ficado perplexo com a facilidade como se deu a vitória do movimento que depôs o então presidente João Goulart.

Já na pós-graduação, Carvalho enfrentou os efeitos do Ato Institucional nº 5 (o AI-5, de 1968), em um cenário de cassação e prisão de professores e alunos – ele contava que até uma namorada sua foi detida no início dos anos 1970, além de conhecidos que foram vítimas da tortura.

Reconhecido não apenas pela pesquisa acadêmica, era também elogiado pela qualidade de seu texto. Ele dizia que a aproximação com o campo da História e o hábito de contribuir com a imprensa o impulsionavam na busca por uma escrita mais enxuta e elegante. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lecionou por 12 anos, até se aposentar em 2009.

O velório será às 9 horas desta segunda-feira, 14, na ABL, no Centro do Rio. Em seguida, às 13 horas, o corpo do historiador será enterrado no mausoléu da ABL, no Cemitério São João Batista, em Botafogo, na zona sul.