Nas produções norte-americanas, muitos filmes de terror têm como protagonistas monstros, zumbis ou serial killers que devoram suas vítimas. No Brasil, alguns vilões que aterrorizam a sociedade são inspirados em personagens reais, vestem fardas, andam armados e recebem salários saídos do dinheiro público. Essa é a premissa de Rota 66 – A Polícia que Mata, série da Globoplay inspirada nas investigações do jornalista Caco Barcellos. A produção recria a cidade de São Paulo dos anos 1980 para narrar casos de uma realidade cruel que, infelizmente, ainda soam atuais mesmo quarenta anos depois.

Rota 66: Tudo sobre a polêmica série inspirada por histórias reais de violência policial
Divulgação

Os policiais exibidos na ficção são oficiais da ROTA (Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar), formada por homens selecionados entre as tropas de choque da Polícia Militar de São Paulo – apesar das acusações e das reformulações ao longo do tempo, a companhia ainda está na ativa. Ao contrário do Esquadrão da Morte, bando de policiais civis que executava pessoas clandestinamente, a ROTA agia às claras e, segundo seus admiradores, dentro da lei. Essa falsa imagem durou até Barcellos expor que, no fundo, havia pouca diferença entre a atuação dos dois grupos.

A trama da série Rota 66 começa com a morte de três garotos de classe média alta, baleados após uma perseguição de carro, no bairro dos Jardins. O caso chamou a atenção de Barcellos, gaúcho recém-chegado a São Paulo. O repórter descobriu no decorrer da apuração que o tiroteio descrito pelos policiais era falso e que os jovens haviam, na verdade, sido executados. A partir daí, seguiu atrás de outros casos semelhantes e se deparou com o violento modus-operandi dos agentes desse destacamento da PM. Para elucidar os fatos, recorreu a funcionários de necrotérios, parentes das vítimas e sobreviventes das chacinas. Era uma missão perigosa: o Brasil ainda vivia sob a ditadura do regime militar.

Rota 66: Tudo sobre a polêmica série inspirada por histórias reais de violência policial
ELENCO Os atores Rafael Lozano, Ailton Graça e Wesley Guimarães (da esq. à dir.): policiais da ROTA atuavam em execuções (Crédito:Divulgação)

A série aborda meia dúzia de casos, adaptações ficcionais inspiradas em fatos que aconteceram. Na vida real, o jornalista identificou cerca de quatro mil corpos em dezessete anos de trabalho, e a maioria dos mortos não tinha sequer passagem pela polícia. Essas reportagens alimentaram uma série de matérias publicadas na revista ISTOÉ (leia mais no box à dir.), em setembro de 1981. Foram aprofundadas ao longo dos anos e reunidas, em 1992, no livro Rota 66 – A História da Polícia que Mata, obra que rendeu a Barcellos o prêmio Jabuti.

A qualidade da adaptação produzida pela Globoplay surge da contundência dos dramas das vítimas, recriados com talento pelos roteiristas Maria Camargo e Teodoro Poppovic. O bom resultado vem, também, da qualidade do elenco. O ator Humberto Carrão, com seu jeito calado e observador, está excelente no papel principal. “Ele traz com naturalidade certas características do Caco, pois ambos são tímidos, generosos e com olhar muito atento ao outro. Há algo bastante similar entre os dois que funcionou bem na tela”, afirma Phillipe Barcinski, que divide a boa direção, tensa e realista, com Diego Martins. Para Carrão, o grande desafio foi interpretar alguém que não existe somente na ficção: “Barcellos não é apenas o personagem de um livro. Por isso optei por construir minha atuação a partir das trocas que tive com ele e das pesquisas dos roteiristas”. O bom elenco de apoio, com mais de cem atores, entre eles Ailton Graça, Naruna Costa e Lara Tremouroux, mostra que o audiovisual no Brasil pode disputar a audiência global no streaming de igual para igual com outros países.

Série foi inspirada em reportagens publicadas na revista IstoÉ

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“Sou repórter da ISTOÉ”, apresenta-se o protagonista da série Rota 66 aos familiares das vítimas da ROTA, na série que acaba de estrear na Globoplay. A primeira matéria sobre o tema foi publicada por Caco Barcellos a 30 de setembro de 1981, quando trabalhava na revista. “Só neste ano (1981), a ROTA, que conta hoje com 750 homens, fuzilou 135 bandidos ou suspeitos, apenas três dezenas a menos do que as execuções do Esquadrão da Morte em cinco anos. No ano passado, a ROTA abateu 150. Contados seus onze anos de atividades, esse número anda pela casa dos mil”, escreveu Barcellos. Sobre a atualidado tema da série, ele lamenta a manutenção que a violência policial persista: “Décadas se passaram, mas quem assistir à série vai perceber que a brutalidade do passado vem se repetindo até hoje em todas as grandes cidades do País.”

Rota 66: Tudo sobre a polêmica série inspirada por histórias reais de violência policial
ISTOÉ Matéria de Caco Barcellos publicada em setembro de 1981: denúncias bem fundamentadas