RETROSPECTO O escritor britânico John le Carré mostra que continua obcecado pelos erros da espionagem

Para conhecer um agente secreto, é preciso apagar da memória a imagem do galã espião James Bond. Em contraste com a figura estereotipada criada em 1953 por Ian Fleming (1908-1964), os espiões de osso e carne exibem mais inteligência que glamour e mais dilemas que certezas sobre que lado devem defender. Vivem em casas miseráveis, andam de carro velho e se envolvem com agentes menos belas que as “bond girls”— e são enganados por muitas, para não dizer todas.

O personagem que sintetiza o espião genuíno se chama George Smiley. Ele foi criado em 1961 no romance “O Morto ao Telefone” (Call for the Dead), de John le Carré, pseudônimo do britânico David Cornwell, então agente do MI6 (Military Intelligence, Section 6). Em 1963, Cornwell abandonou o posto após ser traído por um agente duplo. Passou a se dedicar à literatura, revelando os mais diversos métodos de decifração do MI6 e do inimigo. Seu terceiro romance, “O Espião que Saiu do Frio” (1963), tornou Le Carré e Smiley famosos. O livro foi adaptado para o cinema e deu origem a outros filmes e séries. Hoje, aos 86 anos, le Carré publicou 50 livros, oito deles com Smiley como herói. Em setembro, lançou o romance “Um Legado de Espiões”. No Brasil, o livro sai pela editora Record.

 

Cinzas

Pela primeira vez desde “O Peregrino Secreto” (1990), Smiley reaparece, agora como coadjuvante. Ele pode ser descrito como um superagente sensível em óculos de nerd, morador de Berlim Ocidental no auge da Guerra Fria (1945-1991), a serviço do Circus — assim os funcionários se referem ao MI6. Smiley goza da fama de cérebro da organização. Ou de Hamlet, segundo os desafetos, pois, além de vacilante, foi traído pela mulher. Ele recebe a missão de decifrar as ações de espionagem da Alemanha Oriental. Para isso, conta com uma equipe que inclui o secretário Peter Guillam e os agentes duplos Alec Leamas e a namorada, Liz Gold.

“Um Legado de Espiões” marca a volta de le Carré a situações que viveu nos anos 50 e 60. “Retomei os personagens e lhes apliquei o que vivi para examinar o que ocorreu com eles de um ponto de vista humano”, disse ao jornal “New York Times”. Seu alter ego, o ex-agente Peter Guillam, é o narrador. Ele vive isolado em um sítio na Bretanha (le Carré mora na remota Cornualha) quando é chamado pela central londrina do Circus. A agência reabriu a Operação Windfall, que culminou na morte de Leamas e Liz, fuzilados ao cruzarem o Muro de Berlim. O MI6 suspeita que o casal foi traído por Gullam e Smiley, agora escondido. Guillam confessa que queimou os documentos da operação. Mesmo assim, os burocratas querem saber se ele e Smiley guardaram o comprovante de destruição. “Se fosse assim, nós teríamos tido que destruir os certificados de destruição, não teríamos?”, responde. Enquanto é levado pela equipe de sindicância a vasculhar velhos esconderijos de espiões em busca de Smiley, Guillam medita sobre a falência das instituições e da espionagem, cujo legado é feito de cinzas. Le Carré resume a moral da história: “Os espiões não ganharam a Guerra Fria. No longo prazo, eles não fizeram a menor diferença”. Em compensação, renderam romances empolgantes como este.

George Smiley e sua turma

Filmes e séries com o superespião dos romances de John Le Carré

Fotos: Divulgação; Ralph Crane/The LIFE Picture Collection/Getty Images; Rue des Archives/FIA